Por Eng. Miguel Manso
A desnacionalização da engenharia brasileira é um processo complexo e multifacetado, caracterizado não pela falta de talento ou capacidade técnica local, mas pela transferência progressiva do controle estratégico, da propriedade intelectual e da execução de grandes projetos para conglomerados estrangeiros.
Esse fenômeno foi impulsionado por uma combinação de fatores econômicos, políticos e estruturais.
Para entender a desnacionalização, é crucial lembrar do contexto anterior. Entre as décadas de 1930 a 1980, o Brasil viveu um período de notável desenvolvimento da engenharia nacional, fortemente impulsionado por empresas estatais.
A partir dos anos 1990, principalmente, uma série de eventos iniciou uma mudança estrutural.
a) Privatizações e Abertura Econômica (década de 1990): O Programa Nacional de Desestatização (PND) vendeu estatais estratégicas do setor de engenharia e infraestrutura. A Vale do Rio Doce (mineração) e o Sistema Telebrás (telecomunicações) foram privatizadas. Embora a princípio a gestão permanecesse no país, o controle acionário passou para grupos privados, que, com o tempo, se internacionalizaram ou foram adquiridos por estrangeiros. A abertura econômica facilitou a entrada de empresas multinacionais de engenharia e consultoria.
b) Ciclo de Grandes Eventos e Investimentos em Infraestrutura (2007-2016): Paradoxalmente, o período de grandes obras para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 acelerou a desnacionalização. A complexidade, escala e prazos curtos levaram o governo e investidores a preferirem consórcios com grande participação estrangeira, vistas como detentoras de tecnologia e experiência de gestão de risco.
c) A Crise da Lava Jato (2014 em diante): Este foi talvez o golpe mais decisivo. A Operação Lava Jato investigou e puniu severamente as principais empreiteiras nacionais, que eram a espinha dorsal da engenharia pesada do país.
d) Entrada Maciça de Capital e Empresas Chinesas: A partir dos anos 2010, a China tornou-se um ator dominante na infraestrutura latino-americana e, especialmente, no Brasil.
Essas empresas não trazem apenas capital; trazem seu próprio projeto básico, equipamentos e, muitas vezes, mão de obra especializada, deixando para empresas nacionais apenas serviços de subcontratação de menor valor agregado.
A queda drástica nas exportações de serviços de engenharia e a exclusão de empresas nacionais do Túnel Santos-Guarujá – são sintomas graves e quantificáveis do processo de desnacionalização.
Este é talvez o indicador mais claro da perda de competitividade e prestígio internacional da engenharia brasileira.
O edital do Túnel Subaquático que ligará as cidades de Santos e Guarujá, em São Paulo, é o exemplo mais recente e emblemático da exclusão das empresas nacionais de projetos de grande envergadura.
Os dois fenômenos estão intrinsecamente ligados e formam um ciclo vicioso:
Portanto, a queda nas exportações e a exclusão do Túnel Santos-Guarujá não são eventos isolados. Eles são prova concreta e mensurável de que o processo de desnacionalização não é uma teoria, mas uma realidade operacional e econômica que fragiliza a capacidade do Brasil de ser o arquiteto de seu próprio desenvolvimento.
Os setores de mineração, energia e naval são exemplos particularmente elucidativos, pois mostram desde uma desnacionalização quase total (naval) até um campo de batalha estratégico (energia).
A mineração é o caso mais clássico e dramático de desnacionalização via privatização. A engenharia mineral brasileira, que era centrada na Vale do Rio Doce, sofreu uma transformação radical.
O setor de energia é um mosaico complexo, com áreas mais preservadas e outras profundamente desnacionalizadas.
O setor naval é o exemplo mais trágico e absoluto de desnacionalização. Ele foi praticamente extinto e depois revivido com forte dependência estrangeira.
O setor naval é de fato um caso emblemático. Após um colapso quase total nas décadas de 1990 e 2000, o setor vive um novo ciclo de investimentos, mas este ciclo repete, em grande medida, o padrão de dependência tecnológica do período anterior.
A atividade no setor naval brasileiro não está encolhendo; está, na verdade, em um ciclo de forte crescimento de encomendas. No entanto, a análise da desnacionalização da engenharia permanece válida, pois se desloca da questão da “atividade econômica” para a questão do “controle tecnológico”.
O novo ciclo confirma que o Brasil desenvolveu a capacidade de executar a construção naval (o “braço”), mas não conseguiu reconstruir a capacidade autônoma de projetar e desenvolver as embarcações (o “cérebro”). Portanto, o setor naval ilustra um estágio avançado de desnacionalização: a nação se torna uma prestadora de serviços de montagem para projetos estratégicos concebidos no exterior, mesmo quando esses projetos são destinados a explorar seus próprios recursos naturais.
A soberania tecnológica continua comprometida, agora em um contexto de reaquecimento da atividade econômica no setor.
A análise dos setores revela um padrão comum:
Em todos os casos, o resultado final é a erosão da soberania tecnológica.
O Brasil se tornou um produtor de commodities (minério de ferro, energia bruta, petróleo) cuja transformação em produtos de alto valor agregado (projetos de mineração complexos, sistemas de transmissão inteligente, plataformas e navios) depende cada vez mais de conhecimento e controle estrangeiros.
A desnacionalização nos setores de Telecomunicações, Computação e Informática é não apenas um fenômeno econômico, mas uma questão de soberania tecnológica e segurança nacional no século XXI. A análise revela um quadro de domínio estrangeiro quase absoluto.
Diferente da engenharia pesada, onde havia uma base nacional sólida a ser erodida, nesses setores a desnacionalização foi, em grande parte, estrutural e fundacional, com raras exceções que confirmam a regra.
O setor é o caso mais claro de desnacionalização via política de Estado: a privatização do Sistema Telebrás em 1998.
A Perda do Ativo Estratégico: A venda da Telebrás, que coordenava um sistema nacional de telecomunicações, transferiu o controle de uma infraestrutura crítica – as redes de telefonia fixa e móvel – para conglomerados internacionais.
Dominância Estrangeira Atual: Hoje, o mercado é dominado por:
Telefónica (Espanha)
Telecom Italia (Itália)
América Móvil (México)
O jornalista Luis Nassif, em análise sobre o tema, foi direto: “A privatização das teles significou a entrega de um setor estratégico – equivalente ao sistema circulatório do país na era digital – a grupos estrangeiros. O Brasil perdeu a capacidade de definir políticas tarifárias, de expansão e de segurança de suas próprias redes de comunicação com base no interesse nacional.”
Consequência em Cadeia: A desnacionalização das operadoras levou à desnacionalização dos fornecedores. A infraestrutura de rede (antenas, centrais telefônicas) é dominada por multinacionais como a Ericsson (Suécia), Nokia (Finlândia) e Huawei (China). A engenharia de rede e o planejamento do sistema são, portanto, dependentes de tecnologia e decisões externas.
O Brasil nunca desenvolveu uma indústria significativa de hardware de computação. A política de “Reserva de Mercado” dos anos 1980 foi interrompida e não prosperou em criar empresas competitiva,, e a abertura comercial dos anos 1990 consagrou a dominância estrangeira.
Dependência Total: Praticamente 100% dos servidores, computadores, chips e componentes eletrônicos críticos são importados. Empresas como Dell, HP, Lenovo (China), Intel, AMD e Apple dominam o mercado.
Um relatório da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação (Brasscom) é contundente ao mostrar a vulnerabilidade: “A cadeia de TI hardware no Brasil é extremamente dependente de insumos importados, com um déficit comercial que beira os US$ 10 bilhões anuais. Não há produção nacional de componentes críticos, o que coloca o país em situação de risco em cenários de disrupção da cadeia global.”
Segurança Nacional: Esta dependência é um risco à segurança. Não há garantias contra a existência de backdoors (portas dos fundos) em hardwares e firmwares estrangeiros que possam ser usados para espionagem ou ciberataques.
Este é o setor com a maior presença nacional, mas ainda assim marcado por uma forte assimetria.
Camada de Desenvolvimento de Software (Mais Forte): Existe um ecossistema vibrante de empresas brasileiras de desenvolvimento de software customizado e soluções específicas para o mercado local (ex.: sistemas de gestão para varejo, agronegócio, serviços públicos). Aqui, a engenharia nacional é relevante.
Camada de Plataformas e Sistemas Operacionais (Domínio Absoluto Estrangeiro): A base de toda a pirâmide digital é controlada por empresas estrangeiras:
Sistemas Operacionais: Microsoft (Windows), Google (Android), Apple (iOS/macOS).
Nuvem (Cloud Computing): Domínio absoluto de Amazon Web Services (AWS), Microsoft Azure e Google Cloud Platform (GCP). Esta é talvez a desnacionalização mais crítica atualmente, pois todos os dados, aplicações e serviços do governo e de grandes empresas migram para infraestruturas físicas localizadas e controladas por empresas estrangeiras.
Softwares Corporativos Críticos: SAP (Alemanha), Oracle (EUA), Salesforce (EUA).
Sergio Amadeu, sociólogo e especialista em telecomunicações e privacidade, alerta constantemente para esse risco: “A soberania digital é incompatível com a dependência de nuvens estrangeiras. Quando um país entrega seus dados fiscais, seus registros de saúde e sua inteligência tributária a empresas como Amazon e Microsoft, ele abre mão de controlar seu próprio destino. É uma desnacionalização da inteligência do Estado.” (Declaração em audiência pública no Senado Federal).
Curiosamente, o setor financeiro é uma das poucas áreas onde a engenharia de software nacional não apenas sobreviveu, mas se tornou líder global. Empresas como XP Investimentos e Nubank (que, apesar de ser uma startup global, nasceu e desenvolveu sua tecnologia no Brasil) são exemplos de como a engenharia nacional pode ser competitiva quando há demanda complexa e um ambiente regulatório que não impõe barreiras tecnológicas externas.
A desnacionalização nesses setores é profunda e abrangente:
Telecomunicações: Estrangeiras controlam a infraestrutura.
Hardware: Estrangeiras controlam o equipamento.
Software/Cloud: Estrangeiras controlam as plataformas e os dados.
O Brasil se tornou um grande consumidor e usuário passivo de tecnologia estrangeira.
A “engenharia” nacional, onde existe, está confinada a camadas de aplicação específicas, sem controle sobre os alicerces tecnológicos que sustentam a economia e o Estado no século XXI. Reverter este quadro exigiria uma política agressiva de fomento à indústria nacional, regras de soberania de dados (como o GAIA-X na Europa) e investimentos massivos em pesquisa e desenvolvimento, algo que o país tem negligenciado há décadas.
A dependência tecnológica é a forma mais sutil e perigosa de desnacionalização.
A Desnacionalização na Agronomia e na Arquitetura
A desnacionalização na Agronomia e na Arquitetura segue padrões distintos, mas igualmente profundos, refletindo a inserção dependente do Brasil na economia global e a transformação de seu espaço físico e produtivo e perda de identidade nacional, com graves consequências estratégicas.
Agronomia: A Desnacionalização da Paisagem Agrícola e do Conhecimento Agronômico
O caso da Agronomia é paradoxal: o Brasil é uma potência agrícola global, mas o controle dos insumos, tecnologias e, em grande parte, do próprio conhecimento que sustenta essa produção, está altamente desnacionalizado.
Contraponto (Forte Presença Nacional): A Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) permanece como um farol de ciência agronômica nacional, responsável por feitos históricos como a tropicalização da soja e o desenvolvimento da agricultura no Cerrado. No entanto, sua atuação convive e, em muitos casos, é complementar ao domínio das multinacionais sobre os insumos.
Na Arquitetura, a desnacionalização não se dá pela venda de empresas centralmente, mas pela hegemonia de um modelo globalizado de urbanismo e pelo prestígio associado a “arquitetos-estrela” internacionais, em detrimento da produção local contextualizada.
A desnacionalização na Agronomia e na Arquitetura representa uma perda de autonomia em duas frentes cruciais para a nação:
Em ambos os casos, a soberania tecnológica e cultural é comprometida. A valorização de instituições nacionais como a Embrapa e a resistência de arquitetos que buscam uma produção contextualizada são fundamentais para contrapor essa tendência desnacionalizante.
Este é talvez o nível mais profundo e preocupante da desnacionalização: a perda da capacidade de pensar e planejar a engenharia, não apenas de executá-la.
A desnacionalização das consultorias e o desmonte da capacidade estatal formam um círculo vicioso que compromete o futuro do desenvolvimento nacional.
Enquanto a discussão frequentemente se concentra nas construtoras, a verdadeira soberania reside no controle do conhecimento estratégico: o diagnóstico, o projeto básico, o planejamento. É aí que a desnacionalização é mais severa e seus efeitos, mais duradouros.
Empresas nacionais de consultoria e engenharia foram progressivamente confinadas a projetos de menor escala e complexidade, enquanto os megaprojetos de infraestrutura são dominados por gigantes globais.
Este é o ponto mais crítico. Paralelamente à ascensão das consultorias estrangeiras, ocorreu um sistemático esvaziamento dos órgãos públicos de planejamento. O Estado brasileiro perdeu a capacidade de ser o formulador e fiscalizador técnico dos seus próprios projetos.
A desnacionalização e o desmonte se repetem na escala das cidades.
A combinação desses dois fenômenos cria uma situação perversa:
Portanto, a desnacionalização das consultorias e o desmonte do Estado são duas faces da mesma moeda: a transferência do controle intelectual sobre o futuro da infraestrutura e das cidades brasileiras. Sem reverter essa tendência e reconstruir um Estado planejador e uma cadeia nacional de conhecimento em engenharia, o Brasil permanecerá na condição de colônia tecnológica, executando planos concebidos por outros, que nem sempre colocarão os interesses nacionais em primeiro lugar.
A desnacionalização não é absoluta. Ainda há fortes players nacionais em setores específicos (como saneamento e edificações) e empresas como a Novonor e a WTorre tentam se reerguer. A Embraer mantém seu núcleo de engenharia, embora sob parcerias complexas. A Petrobras, apesar de pressões, ainda é um centro vital de P&D.
No entanto, a tendência geral é clara: o Brasil passou de um país que dominava a execução de sua própria engenharia pesada para um que, em grande medida, terceiriza seu desenvolvimento para conglomerados globais. Reverter esse quadro exigiria uma política de Estado de longo prazo que combine:
Fortalecer as carreiras de Estado nas Engenharias e a capacidade de planejamento e fiscalização
Reconstrução das empresas nacionais de engenharia.
Políticas de conteúdo local em editais de licitação.
Apoio massivo à inovação e P&D nas universidades e empresas.
Uma estratégia geoeconômica clara que equilibre a necessária atração de investimentos estrangeiros com a preservação da capacidade técnica e da soberania nacional.
A engenharia brasileira, que já foi motivo de orgulho e instrumento de desenvolvimento, hoje opera em um contexto globalizado onde sua autonomia estratégica está significativamente reduzida.
Esta é a essência da desnacionalização da engenharia: a perda da capacidade do Brasil de comandar o próprio desenvolvimento industrial.
É urgente a necessidade de mobilização nacional e da convocação da 1a. Conferência Nacional da Engenharia para estabelecer um PLANO NACIONAL PARA A ENGENHARIA DO BRASIL
Miguel Manso é Engenheiro eletrônico formado pela USP, com especialização em Telecomunicações pela Unicamp e em Inteligência Artificial pela UFV, é diretor de Políticas Públicas da EngD – Engenharia pela Democracia. Coordenou a 1a. Conferência Nacional da Engenharia Ciência Tecnologia e Inovação e é pesquisador da Fundação Maurício Grabois.