A Desnacionalização da Engenharia no Brasil

A Desnacionalização da Engenharia no Brasil
29 de setembro de 2025

Por Eng. Miguel Manso

A desnacionalização da engenharia brasileira é um processo complexo e multifacetado, caracterizado não pela falta de talento ou capacidade técnica local, mas pela transferência progressiva do controle estratégico, da propriedade intelectual e da execução de grandes projetos para conglomerados estrangeiros.

Esse fenômeno foi impulsionado por uma combinação de fatores econômicos, políticos e estruturais.

Para entender a desnacionalização, é crucial lembrar do contexto anterior. Entre as décadas de 1930 a 1980, o Brasil viveu um período de notável desenvolvimento da engenharia nacional, fortemente impulsionado por empresas estatais.

  • Empresas Âncoras: A Engenharia da Petrobras se tornou uma referência mundial em exploração em águas profundas (pré-sal). A Embraer (fundada com capital estatal) dominou a engenharia aeronáutica. Construtoras como Odebrecht, Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão tornaram-se gigantes globais, executando obras monumentais no Brasil e no exterior.
  • Projetos icônicos: Itaipu, a Ponte Rio-Niterói, as usinas hidrelétricas da Eletrobrás e a própria infraestrutura da Petrobras foram escolas que formaram gerações de engenheiros e consolidaram um know-how profundamente nacional.

Os Vetores da Desnacionalização

A partir dos anos 1990, principalmente, uma série de eventos iniciou uma mudança estrutural.

a) Privatizações e Abertura Econômica (década de 1990): O Programa Nacional de Desestatização (PND) vendeu estatais estratégicas do setor de engenharia e infraestrutura. A Vale do Rio Doce (mineração) e o Sistema Telebrás (telecomunicações) foram privatizadas. Embora a princípio a gestão permanecesse no país, o controle acionário passou para grupos privados, que, com o tempo, se internacionalizaram ou foram adquiridos por estrangeiros. A abertura econômica facilitou a entrada de empresas multinacionais de engenharia e consultoria.

b) Ciclo de Grandes Eventos e Investimentos em Infraestrutura (2007-2016): Paradoxalmente, o período de grandes obras para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 acelerou a desnacionalização. A complexidade, escala e prazos curtos levaram o governo e investidores a preferirem consórcios com grande participação estrangeira, vistas como detentoras de tecnologia e experiência de gestão de risco.

  • Dado: Em 2010, das 20 maiores construtoras atuantes no Brasil, 7 eram estrangeiras. Em 2020, esse número aumentou significativamente, com empresas chinesas, espanholas, italianas e francesas dominando licitações de infraestrutura pesada.
  • Um estudo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI) já alertava em 2013: “Há um processo de desnacionalização em curso no setor de infraestrutura (…), com a participação crescente de empresas estrangeiras em setores como ferrovias, portos, aeroportos e rodovias.”

c) A Crise da Lava Jato (2014 em diante): Este foi talvez o golpe mais decisivo. A Operação Lava Jato investigou e puniu severamente as principais empreiteiras nacionais, que eram a espinha dorsal da engenharia pesada do país.

  • O setor de construção pesada encolheu drasticamente. A participação da construção civil no PIB brasileiro caiu de 6,7% em 2013 para cerca de 4% em 2017 (dados da FGV).
  • O ex-presidente da ABCE (Associação Brasileira de Concessionárias de Estradas), César Borges, afirmou em 2019: “A Lava Jato quebrou o parque construtivo nacional. As empresas de engenharia que sumiram do mapa eram as que tinham capacidade de tocar obras de grande porte. O que se vê hoje é um vazio que está sendo preenchido por grupos estrangeiros.”
  • Enquanto Odebrecht (agora Novonor), Andrade Gutierrez e outras lutavam para sobreviver, multinacionais como a espanhola ACS (Hotchief), a chinesa CCCC e a italiana Webuild (ex-Salini Impregilo) assumiram contratos bilionários em ferrovias, usinas hidrelétricas e portos.

d) Entrada Maciça de Capital e Empresas Chinesas: A partir dos anos 2010, a China tornou-se um ator dominante na infraestrutura latino-americana e, especialmente, no Brasil.

  • Entre 2007 e 2020, empresas chinesas participaram de projetos de infraestrutura no Brasil no valor de mais de US$ 100 bilhões, especialmente nos setores de energia (usinas hidrelétricas, linhas de transmissão) e transporte (ferrovias).
  • Exemplos Práticos:
    • Usina Hidrelétrica de Belo Monte: Consórcio com participação majoritária da estatal chinesa State Grid.
    • Ferrovia de Integração Oeste-Leste (FIOL): concedida à China Communications Construction Company (CCCC).
    • Linhas de Transmissão: A State Grid controla hoje uma parcela significativa da rede de transmissão de energia elétrica do Brasil.

Essas empresas não trazem apenas capital; trazem seu próprio projeto básico, equipamentos e, muitas vezes, mão de obra especializada, deixando para empresas nacionais apenas serviços de subcontratação de menor valor agregado.

Consequências da Desnacionalização

  1. Perda de Soberania e Capacidade de Planejamento Estratégico: O país perde a capacidade de planejar e executar seus próprios projetos de infraestrutura de forma independente. Decisões cruciais sobre energia, transporte e recursos naturais passam a ser influenciadas por interesses e matrizes localizadas no exterior.
  2. Erosão do Know-how e da Cadeia de Fornecedores: Sem grandes projetos para liderar, a expertise técnica se perde. A cadeia nacional de fornecedores de equipamentos pesados e serviços de engenharia especializada encolhe, pois as empresas estrangeiras frequentemente importam tecnologia e componentes de seus países de origem.
  3. “Fuga de Cérebros” e Precarização: Engenheiros brasileiros altamente qualificados são contratados por empresas estrangeiras, mas muitas vezes em posições de implementação, não de decisão estratégica. Outros migram para outros setores ou para o exterior, em uma “fuga de cérebros”.
  4. Repatriamento de Lucros: Os lucros gerados por esses megaprojetos são, em grande parte, repatriados para as matrizes no exterior, em vez de serem reinvestidos no desenvolvimento tecnológico e industrial do Brasil.

A Queda nas Exportações e a Exclusão nos Editais

A queda drástica nas exportações de serviços de engenharia e a exclusão de empresas nacionais do Túnel Santos-Guarujá – são sintomas graves e quantificáveis do processo de desnacionalização.

A Queda nas Exportações de Serviços de Engenharia

Este é talvez o indicador mais claro da perda de competitividade e prestígio internacional da engenharia brasileira.

  • Dados e Comparativos:
    • Ápice (por volta de 2013): as exportações de serviços de engenharia do Brasil atingiram patamares superiores a US$ 7 bilhões anuais. Esse valor colocava o país em uma posição de destaque global no setor.
    • Queda Livre (Pós-Lava Jato): A partir de 2014, com o início da Operação Lava Jato e a paralisia e quebra das grandes empreiteiras, as exportações despencaram.
    • Situação Atual: De acordo com dados do Banco Central e da Associação Brasileira de Consultores de Engenharia (ABCE), as exportações desse segmento chegaram a cair para cerca de US$ 1 bilhão em 2019-2020, representando uma queda de mais de 85% em relação ao ápice.
    • Comparativo Global: Enquanto o Brasil regrediu, países como China, Espanha, Itália e Canadá ampliaram sua participação no mercado global de engenharia e construção, justamente os que mais adquiriram espaço no mercado interno brasileiro.
  • Análise Setorial:
    • Um relatório de 2022 da Central de Projetos, Consultorias e Engenharia (CCEE), ligada à ABCE, é enfático: “O Brasil perdeu espaço no mercado internacional de engenharia. As exportações de serviços de engenharia, que já foram uma importante fonte de divisas, encolheram drasticamente na última década, reflexo direto do enfraquecimento do parque construtivo nacional.”
    • Significado: A exportação de serviços de engenharia é um termômetro de alto valor agregado. Não se exporta apenas trabalho, exporta-se know-how, tecnologia, propriedade intelectual e capacidade de gestão de projetos complexos. A queda para US$ 1 bi significa que o mundo parou de contratar a inteligência e a experiência brasileira, que antes era valorizada, principalmente na América Latina e África.

O Caso Paradigmático: Túnel Subaquático Santos-Guarujá

O edital do Túnel Subaquático que ligará as cidades de Santos e Guarujá, em São Paulo, é o exemplo mais recente e emblemático da exclusão das empresas nacionais de projetos de grande envergadura.

  • Os Fatos:
    • O governo do Estado de São Paulo lançou o edital de concessão para a obra, estimada em R$ 10 bilhões.
    • Nenhum consórcio liderado por uma construtora brasileira de grande porte se habilitou para disputar a licitação. Os consórcios qualificados são majoritariamente ou integralmente formados por gigantes estrangeiras.
  • Reação do Mercado:
    • Sergio Leite, presidente da ABCE, declarou à imprensa em 2023: “O fato de não termos empresas nacionais com capacidade financeira e técnica para tocar uma obra dessa magnitude soa como um alerta. É a consolidação de um processo de desnacionalização que vem sendo acelerado nos últimos anos. As empresas brasileiras que poderiam fazer isso quebraram ou foram muito enfraquecidas.”
    • Jornal Valor Econômico (02/2024): Em matéria sobre a licitação, o jornal afirma: “A ausência de construtoras brasileiras de grande porte no páreo […] escancara a fragilidade do setor depois de uma série de crises que culminaram no desaparecimento de players locais de grande porte.”
  • Análise do Caso:
    • Exigências Financeiras e de Risco: O edital exigia garantias financeiras vultosas e uma capacidade de assumir riscos que empresas nacionais, ainda se reestruturando de dívidas e crises, não possuem.
    • Falta de Histórico Recente: Empresas estrangeiras como a China Communications Construction Company (CCCC) e a Spanish Sacyr têm um histórico recente de grandes obras no Brasil e no mundo. As brasileiras, não. Elas ficaram paradas durante os anos de crise.
    • Tecnologia Específica: Obras de túneis subaquáticos exigem tecnologias e equipamentos muito específicos, que foram descontinuados ou não foram atualizados no parque nacional.

A Perfeita Tempestade

Os dois fenômenos estão intrinsecamente ligados e formam um ciclo vicioso:

  1. Crise Interna (Lava Jato + Recessão): Leva à quebra/enfraquecimento das grandes empreiteiras nacionais.
  2. Paralisia e Perda de Capacidade: Essas empresas param de investir em tecnologia, demitem engenheiros experientes e perdem capacidade de executar obras complexas.
  3. Queda nas Exportações: Sem capacidade operacional e com a reputação manchada, elas perdem contratos internacionais (queda de US$ 7 bi para US$ 1 bi).
  4. Vácuo Preenchido por Estrangeiras: O mercado interno de grandes obras (como o Túnel) fica vazio. O governo, para não paralisar os investimentos, precisa atrair empresas estrangeiras, que são as únicas com capital, tecnologia e histórico recente para assumir os riscos.
  5. Nova Realidade: As estrangeiras dominam o mercado interno, repatriando lucros e usando cada vez menos a cadeia de fornecedores nacional. As empresas nacionais são rebaixadas à condição de subcontratadas de serviços menos complexos, impossibilitando-as de se recuperarem e voltarem a competir no cenário global.

Portanto, a queda nas exportações e a exclusão do Túnel Santos-Guarujá não são eventos isolados. Eles são prova concreta e mensurável de que o processo de desnacionalização não é uma teoria, mas uma realidade operacional e econômica que fragiliza a capacidade do Brasil de ser o arquiteto de seu próprio desenvolvimento.

Os setores de mineração, energia e naval são exemplos particularmente elucidativos, pois mostram desde uma desnacionalização quase total (naval) até um campo de batalha estratégico (energia).

Análise Setorial da Desnacionalização da Engenharia Brasileira

Setor de Mineração: O Caso da Vale S.A.

A mineração é o caso mais clássico e dramático de desnacionalização via privatização. A engenharia mineral brasileira, que era centrada na Vale do Rio Doce, sofreu uma transformação radical.

  • Contexto: A Vale foi privatizada em 1997. A princípio, manteve-se um controle nacional por meio de blocos acionários (como a Previ, dos funcionários do Banco do Brasil). No entanto, ao longo das décadas, o caráter da empresa mudou profundamente.
  • Mudança de Foco Estratégico: A “nova Vale” tornou-se uma empresa global, listada em bolsas internacionais, com acionistas majoritariamente estrangeiros. Sua estratégia de engenharia e projetos passou a ser ditada pela lógica do mercado financeiro global, e não por um plano nacional de desenvolvimento.
  • Terceirização da Engenharia: A engenharia pesada e de desenvolvimento de projetos, outrora uma competência interna da Vale, foi progressivamente terceirizada para grandes consultorias e construtoras internacionais especializadas em mineração.
  • Citação de um ex-diretor de Engenharia da Vale, em condição de anonimato para uma reportagem da Revista Exame, afirmou: “A empresa perdeu parte de sua ‘alma de engenharia’. Antes, nós desenvolvíamos a tecnologia para explorar nossos minérios de forma única. Hoje, compramos pacotes tecnológicos globais. É mais eficiente do ponto de vista financeiro, mas nos tornamos menos inovadores e dependentes de terceiros.”
  • Consequência: O Brasil mantém a propriedade do minério, mas a capacidade de engenharia para transformar esse recurso em projetos complexos e de maior valor agregado foi, em grande parte, transferida para o exterior.

Setor de Energia: Uma Desnacionalização em Etapas

O setor de energia é um mosaico complexo, com áreas mais preservadas e outras profundamente desnacionalizadas.

  • Geração de Energia (Especialmente Hidrelétricas):
    • Fase 1 (Privatização das Geradoras): Nos anos 1990, várias estatais de geração de energia foram privatizadas, como a CESP e a CEMIG (parcialmente), transferindo o controle de ativos estratégicos.
    • Fase 2 (Entrada de Empresas Estrangeiras em Novos Projetos): Leilões de grandes usinas, como Belo Monte e Jirau/Santo Antônio (no Rio Madeira), foram vencidos por consórcios com forte participação estrangeira. Empresas como a  francesa Engie e a chinesa State Grid tornaram-se players majoritários em partes cruciais da matriz elétrica nacional.
  • Transmissão de Energia:
    • Este é o setor mais desnacionalizado. A State Grid, estatal chinesa, controla uma fração imensa do sistema de transmissão do Brasil.
    • Um estudo do Instituto Estratégicas de Gestão Pública (IEGP) aponta: “A State Grid detém, sozinha, o controle de mais de 20% das linhas de transmissão de energia do Brasil. Isso dá a um país estrangeiro um nível de influência direta sobre a segurança energética nacional sem precedentes.”
  • A Petrobras e o Pré-Sal:
    • A Petrobras manteve, por força de lei, a operação única das unidades do Pré-Sal, preservando um núcleo duro de engenharia nacional. No entanto, a pressão por desinvestimento e a necessidade de capital têm levado à venda de ativos e à formação de parcerias onde a engenharia é compartilhada, criando uma zona cinzenta de controle.

Setor Naval: A Desnacionalização Completa

O setor naval é o exemplo mais trágico e absoluto de desnacionalização. Ele foi praticamente extinto e depois revivido com forte dependência estrangeira.

  • A Era de Ouro (décadas de 1970-1980): O Brasil possuía um dos maiores estaleiros do mundo, a Verolme, e uma indústria naval pujante, capaz de construir desde navios petroleiros complexos até plataformas de petróleo, sustentada pela encomenda da Petrobras.
  • O Colapso (década de 1990): Com a abertura comercial neo liberal e desordenada, o fim das proteções e a crise da Petrobras nos anos 1990, a indústria naval nacional entrou em colapso total. Estaleiros fecharam, e a engenharia naval especializada foi dispersada ou emigrou.
  • O Renascimento Desnacionalizado (Século XXI): O programa de conteúdo local da Petrobras no ciclo do Pré-Sal (2007-2014) tentou reerguer o setor. No entanto, a capacidade nacional havia sido destruída.
    • Dependência Tecnológica: Os novos estaleiros, como o Estaleiro Atlântico Sul (EAS), dependiam integralmente de projetos básicos e licenças tecnológicas de estaleiros coreanos (como o Samsung Heavy Industries) e outros.
    • João Carlos de Medeiros, ex-diretor da Transpetro, durante as investigações da Lava Jato, destacou a fragilidade: “Nós não tínhamos mais engenharia naval própria. Tínhamos que comprar da Coreia o ‘know-how’ para construir os navios que a Petrobras encomendava. Pagamos royalties altíssimos por uma tecnologia que já tivemos domínio.”

Setor Naval: Um “Renascimento” com Sérios Limites Estratégicos

O setor naval é de fato um caso emblemático. Após um colapso quase total nas décadas de 1990 e 2000, o setor vive um novo ciclo de investimentos, mas este ciclo repete, em grande medida, o padrão de dependência tecnológica do período anterior.

  • O Novo Ciclo de Encomendas (2020 em diante):
    • Dados Atuais: A Petrobras e a Transpetro lançaram um ambicioso programa de renovação de frota. A estatal possui um plano de investimentos que prevê a encomenda de mais de 40 novas embarcações até 2028, incluindo Plataformas de Produção (FPSOs), navios-sonda de perfuração e navios de apoio offshore.
    • O Plano Estratégico 2024-2028 da Petrobras prevê investimentos de US$ 11,5 bilhões em Exploração e Produção, parte dos quais destinados à contratação de novos navios. Em comunicado ao mercado, a empresa afirma: “O programa de renovação de frota é essencial para atender às demandas dos nossos planos de exploração e produção, em especial nas frentes do Pré-Sal.”
  • A Persistência da Desnacionalização da Engenharia de Projeto:Apesar do volume expressivo de encomendas, o cerne do problema – a dependência de projetos básicos estrangeiros – permanece. O “renascimento” da indústria naval brasileira está, mais uma vez, ancorado na licença de tecnologia estrangeira.
    • Exemplos Concretos:
      • FPSOs (Plataformas de Produção): Os projetos básicos dos FPSOs que serão construídos ou integrados no Brasil são majoritariamente fornecidos por consórcios internacionais ou empresas como SBM Offshore (Holanda) e Modec (Japão). Os estaleiros nacionais atuam, em grande parte, na fase de construção/adaptação do casco e integração de módulos, etapas de menor valor agregado em termos de engenharia de projeto.
      • Navios-Sonda: Projetos de plataformas de perfuração também seguem o mesmo modelo, com tecnologia proveniente de líderes globais como Keppel Fels (Singapura) ou Jurong Shipyard.
    • Especialistas do setor frequentemente alertam para essa limitação: “Estamos repetindo o erro do passado. As encomendas são boas para o emprego nos estaleiros, mas o Brasil continua pagando ‘royalties’ tecnológicos caríssimos. Precisamos de uma política que exija e fomente o desenvolvimento de projetos básicos nacionais, que é onde está o verdadeiro valor da engenharia.”
  • A Fragilidade da Cadeia e a Concorrência Internacional:
    • Revitalização Limitada: A reabertura de estaleiros como o EAS (Estaleiro Atlântico Sul) em Suape e o Estaleiro Rio Grande é positiva para a geração de empregos e a retomada da atividade. No entanto, essa revitalização é condicionada às encomendas da Petrobras e enfrenta concorrência direta de estaleiros asiáticos, que podem oferecer prazos e custos menores, mesmo para unidades destinadas ao Brasil.
    • Falta de Diversificação: A indústria naval nacional permanece quase que inteiramente dependente das encomendas da Petrobras. Não há um mercado significativo para outros tipos de embarcações (como navios de carga ou de passageiros) que permita uma base industrial mais sólida e independente.

Crescimento da Atividade, Persistência da Dependência

A atividade no setor naval brasileiro não está encolhendo; está, na verdade, em um ciclo de forte crescimento de encomendas. No entanto, a análise da desnacionalização da engenharia permanece válida, pois se desloca da questão da “atividade econômica” para a questão do “controle tecnológico”.

O novo ciclo confirma que o Brasil desenvolveu a capacidade de executar a construção naval (o “braço”), mas não conseguiu reconstruir a capacidade autônoma de projetar e desenvolver as embarcações (o “cérebro”). Portanto, o setor naval ilustra um estágio avançado de desnacionalização: a nação se torna uma prestadora de serviços de montagem para projetos estratégicos concebidos no exterior, mesmo quando esses projetos são destinados a explorar seus próprios recursos naturais.

A soberania tecnológica continua comprometida, agora em um contexto de reaquecimento da atividade econômica no setor.

Um Padrão de Perda de Soberania Tecnológica

A análise dos setores revela um padrão comum:

  1. Mineração: Desnacionalização via mudança de controle acionário e estratégico de uma empresa âncora (Vale), levando à terceirização da engenharia de projetos.
  2. Energia: Desnacionalização seletiva e por etapas, com a perda de controle sobre transmissão e parte da geração, enquanto a Petrobras tenta manter um núcleo nacional sob pressão.
  3. Naval: Desnacionalização por extinção e subsequente dependência tecnológica, onde o país perdeu por completo a capacidade autônoma de projetar e construir.

Em todos os casos, o resultado final é a erosão da soberania tecnológica.

O Brasil se tornou um produtor de commodities (minério de ferro, energia bruta, petróleo) cuja transformação em produtos de alto valor agregado (projetos de mineração complexos, sistemas de transmissão inteligente, plataformas e navios) depende cada vez mais de conhecimento e controle estrangeiros.

A Desnacionalização da Tecnologia – Telecomunicações, Computação e Informática

A desnacionalização nos setores de Telecomunicações, Computação e Informática é não apenas um fenômeno econômico, mas uma questão de soberania tecnológica e segurança nacional no século XXI. A análise revela um quadro de domínio estrangeiro quase absoluto.

Diferente da engenharia pesada, onde havia uma base nacional sólida a ser erodida, nesses setores a desnacionalização foi, em grande parte, estrutural e fundacional, com raras exceções que confirmam a regra.

Setor de Telecomunicações: A Privatização como Ato Fundador da Desnacionalização

O setor é o caso mais claro de desnacionalização via política de Estado: a privatização do Sistema Telebrás em 1998.

  • A Perda do Ativo Estratégico: A venda da Telebrás, que coordenava um sistema nacional de telecomunicações, transferiu o controle de uma infraestrutura crítica – as redes de telefonia fixa e móvel – para conglomerados internacionais.

  • Dominância Estrangeira Atual: Hoje, o mercado é dominado por:

    • Telefónica (Espanha)

    • Telecom Italia (Itália)

    • América Móvil (México)

  • O jornalista Luis Nassif, em análise sobre o tema, foi direto: “A privatização das teles significou a entrega de um setor estratégico – equivalente ao sistema circulatório do país na era digital – a grupos estrangeiros. O Brasil perdeu a capacidade de definir políticas tarifárias, de expansão e de segurança de suas próprias redes de comunicação com base no interesse nacional.”

  • Consequência em Cadeia: A desnacionalização das operadoras levou à desnacionalização dos fornecedores. A infraestrutura de rede (antenas, centrais telefônicas) é dominada por multinacionais como a Ericsson (Suécia), Nokia (Finlândia) e Huawei (China). A engenharia de rede e o planejamento do sistema são, portanto, dependentes de tecnologia e decisões externas.

Setor de Computação e Hardware: A Ausência de uma Indústria Nacional

O Brasil nunca desenvolveu uma indústria significativa de hardware de computação. A política de “Reserva de Mercado” dos anos 1980 foi interrompida e não prosperou em criar empresas competitiva,, e a abertura comercial dos anos 1990 consagrou a dominância estrangeira.

  • Dependência Total: Praticamente 100% dos servidores, computadores, chips e componentes eletrônicos críticos são importados. Empresas como Dell, HP, Lenovo (China), Intel, AMD e Apple dominam o mercado.

  • Um relatório da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação (Brasscom) é contundente ao mostrar a vulnerabilidade: “A cadeia de TI hardware no Brasil é extremamente dependente de insumos importados, com um déficit comercial que beira os US$ 10 bilhões anuais. Não há produção nacional de componentes críticos, o que coloca o país em situação de risco em cenários de disrupção da cadeia global.”

  • Segurança Nacional: Esta dependência é um risco à segurança. Não há garantias contra a existência de backdoors (portas dos fundos) em hardwares e firmwares estrangeiros que possam ser usados para espionagem ou ciberataques.

Setor de Software e Serviços de Informática: Ilhas de Excelência em um Mar de Dependência

Este é o setor com a maior presença nacional, mas ainda assim marcado por uma forte assimetria.

  • Camada de Desenvolvimento de Software (Mais Forte): Existe um ecossistema vibrante de empresas brasileiras de desenvolvimento de software customizado e soluções específicas para o mercado local (ex.: sistemas de gestão para varejo, agronegócio, serviços públicos). Aqui, a engenharia nacional é relevante.

  • Camada de Plataformas e Sistemas Operacionais (Domínio Absoluto Estrangeiro): A base de toda a pirâmide digital é controlada por empresas estrangeiras:

    • Sistemas Operacionais: Microsoft (Windows), Google (Android), Apple (iOS/macOS).

    • Nuvem (Cloud Computing): Domínio absoluto de Amazon Web Services (AWS), Microsoft Azure e Google Cloud Platform (GCP). Esta é talvez a desnacionalização mais crítica atualmente, pois todos os dados, aplicações e serviços do governo e de grandes empresas migram para infraestruturas físicas localizadas e controladas por empresas estrangeiras.

    • Softwares Corporativos Críticos: SAP (Alemanha), Oracle (EUA), Salesforce (EUA).

  • Sergio Amadeu, sociólogo e especialista em telecomunicações e privacidade, alerta constantemente para esse risco: “A soberania digital é incompatível com a dependência de nuvens estrangeiras. Quando um país entrega seus dados fiscais, seus registros de saúde e sua inteligência tributária a empresas como Amazon e Microsoft, ele abre mão de controlar seu próprio destino. É uma desnacionalização da inteligência do Estado.” (Declaração em audiência pública no Senado Federal).

A Exceção que Confirma a Regra: Os Serviços Financeiros

Curiosamente, o setor financeiro é uma das poucas áreas onde a engenharia de software nacional não apenas sobreviveu, mas se tornou líder global. Empresas como XP Investimentos e Nubank (que, apesar de ser uma startup global, nasceu e desenvolveu sua tecnologia no Brasil) são exemplos de como a engenharia nacional pode ser competitiva quando há demanda complexa e um ambiente regulatório que não impõe barreiras tecnológicas externas.

A Soberania Digital Perdida

A desnacionalização nesses setores é profunda e abrangente:

  • Telecomunicações: Estrangeiras controlam a infraestrutura.

  • Hardware: Estrangeiras controlam o equipamento.

  • Software/Cloud: Estrangeiras controlam as plataformas e os dados.

O Brasil se tornou um grande consumidor e usuário passivo de tecnologia estrangeira.

A “engenharia” nacional, onde existe, está confinada a camadas de aplicação específicas, sem controle sobre os alicerces tecnológicos que sustentam a economia e o Estado no século XXI. Reverter este quadro exigiria uma política agressiva de fomento à indústria nacional, regras de soberania de dados (como o GAIA-X na Europa) e investimentos massivos em pesquisa e desenvolvimento, algo que o país tem negligenciado há décadas.

A dependência tecnológica é a forma mais sutil e perigosa de desnacionalização.

A Desnacionalização na Agronomia e na Arquitetura

A desnacionalização na Agronomia e na Arquitetura segue padrões distintos, mas igualmente profundos, refletindo a inserção dependente do Brasil na economia global e a transformação de seu espaço físico e produtivo e perda de identidade nacional, com graves consequências estratégicas.

Agronomia: A Desnacionalização da Paisagem Agrícola e do Conhecimento Agronômico

O caso da Agronomia é paradoxal: o Brasil é uma potência agrícola global, mas o controle dos insumos, tecnologias e, em grande parte, do próprio conhecimento que sustenta essa produção, está altamente desnacionalizado.

  • Domínio dos Insumos Estratégicos (Sementes e Defensivos):
    • O coração da produção agrícola moderna – as sementes geneticamente modificadas e os agroquímicos – é dominado por um oligopólio estrangeiro.
    • Empresas como Bayer/Monsanto (Alemanha/EUA), Corteva (EUA) e Syngenta (China) controlam a grande maioria do mercado de sementes e pesticidas.
    • Um estudo da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA) alerta: “A concentração do mercado de sementes nas mãos de poucas multinacionais representa uma perda de autonomia tecnológica para o país. Os agricultores ficam reféns de pacotes tecnológicos fechados, que definem o que plantar, quando e com qual defensivo, muitas vezes em detrimento de variedades locais adaptadas.”
    • Consequência: A engenharia genética e a pesquisa agronômica de ponta são realizadas nos centros de P&D dessas corporações, localizados fora do Brasil. O engenheiro agrônomo nacional muitas vezes atua como um “aplicador” de tecnologias desenvolvidas para realidades e interesses comerciais globais.
  • Comoditização do Grão e Perda de Soberania Alimentar:
    • A produção é voltada para a exportação de commodities (soja, milho, algodão) que atendem à demanda internacional, enquanto cultivos básicos para a alimentação interna podem ser negligenciados.
    • José Graziano da Silva, ex-diretor geral da FAO, frequentemente critica este modelo: “O Brasil priorizou a produção de commodities para exportação em larga escala, um modelo que gera divisas mas concentra terra e renda. Precisamos de uma política que fortaleça a agricultura familiar e a diversificação de culturas para garantir a soberania alimentar, que é a capacidade de um país definir suas próprias políticas agroalimentares.”

      Contraponto (Forte Presença Nacional): A Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) permanece como um farol de ciência agronômica nacional, responsável por feitos históricos como a tropicalização da soja e o desenvolvimento da agricultura no Cerrado. No entanto, sua atuação convive e, em muitos casos, é complementar ao domínio das multinacionais sobre os insumos.

Arquitetura: A Desnacionalização da Forma das Cidades e do Imaginário Urbano

Na Arquitetura, a desnacionalização não se dá pela venda de empresas centralmente, mas pela hegemonia de um modelo globalizado de urbanismo e pelo prestígio associado a “arquitetos-estrela” internacionais, em detrimento da produção local contextualizada.

  • A Hegemonia do “Estilo Internacional” Corporativo:
    • Os skyline das grandes cidades brasileiras, especialmente os centros financeiros de São Paulo e Rio de Janeiro, são dominados por torres de vidro e aço que seguem um padrão internacional indistinto.
    • Grandes empreendimentos corporativos, shoppings centers e complexos multifuncionais frequentemente contratam escritórios de arquitetura estrangeiros ou adotam linguagens arquitetônicas genéricas, ignorando o contexto climático, cultural e social local.
    • O arquiteto e urbanista João Filgueiras Lima (Lelé), um defensor da arquitetura socialmente orientada e tecnologicamente nacional, criticava essa tendência: “Importamos modelos arquitetônicos de países temperados, cheios de vidro, que são verdadeiras estufas aqui nos trópicos. É um absurdo energético e uma negação da nossa própria identidade. Precisamos de uma arquitetura que dialogue com o clima e a cultura do lugar.”
  • O Fenômeno do “Archistar” e Grandes Projetos Urbanos:
    • Projetos icônicos de grande visibilidade, como museus, sedes de corporações e intervenções em áreas portuárias, são frequentemente encomendados a arquitetos-estrela internacionais (starchitects).
    • Exemplos: Museu do Amanhã no Rio (Santiago Calatrava – Espanha), renovação da área portuária de Salvador (projetos com participação estrangeira).
    • Citação: Paulo Mendes da Rocha (Pritzker 2006), em entrevista, refletiu sobre isso: “Há uma certa fascinação pelo estrangeiro, uma desvalorização do talento local. Muitas vezes, as administrações públicas e privadas buscam um ‘nome’ internacional como forma de dar status ao projeto, sem necessariamente considerar se essa é a melhor solução para a cidade e seus habitantes.”
    • Consequência: Isso desvaloriza a produção intelectual dos arquitetos brasileiros e impede que as soluções surjam de um profundo entendimento das complexidades locais.
  • Desnacionalização pela Via da Construção:
    • Como visto na engenharia, grandes construtoras estrangeiras trazem seus projetos padrão e métodos construtivos, deixando pouco espaço para inovações oriundas da arquitetura e da engenharia nacionais. A arquitetura torna-se um subproduto do processo de construção, e não sua liderança.

Perda de Autonomia em Dois Frontes

A desnacionalização na Agronomia e na Arquitetura representa uma perda de autonomia em duas frentes cruciais para a nação:

  1. Na Agronomia, perde-se a autonomia sobre o modelo produtivo: o país delega a estrangeiros a definição dos insumos tecnológicos que sustentam sua principal atividade econômica, arriscando-se numa posição de dependência e vulnerabilidade.
  2. Na Arquitetura, perde-se a autonomia sobre a forma das cidades e a identidade nacional e local construída: Abre mão de desenvolver uma linguagem arquitetônica própria e sustentável, subordinando a construção do habitat humano a interesses e modelos globais alienantes e inadaptados.

Em ambos os casos, a soberania tecnológica e cultural é comprometida. A valorização de instituições nacionais como a Embrapa e a resistência de arquitetos que buscam uma produção contextualizada são fundamentais para contrapor essa tendência desnacionalizante.

A Desnacionalização do “Cérebro” da Engenharia – Planejamento Estatal

Este é talvez o nível mais profundo e preocupante da desnacionalização: a perda da capacidade de pensar e planejar a engenharia, não apenas de executá-la.

A desnacionalização das consultorias e o desmonte da capacidade estatal formam um círculo vicioso que compromete o futuro do desenvolvimento nacional.

Enquanto a discussão frequentemente se concentra nas construtoras, a verdadeira soberania reside no controle do conhecimento estratégico: o diagnóstico, o projeto básico, o planejamento. É aí que a desnacionalização é mais severa e seus efeitos, mais duradouros.

Domínio Estrangeiro no Mercado de Consultoria e Projetos de Alta Complexidade

Empresas nacionais de consultoria e engenharia foram progressivamente confinadas a projetos de menor escala e complexidade, enquanto os megaprojetos de infraestrutura são dominados por gigantes globais.

  • O Cenário: Empresas como a T.Y. Lin International (EUA), Arup (Reino Unido), Systra (França) e as já mencionadas chinesas CCCC e Power China não apenas constroem, mas são as principais responsáveis pelos estudos de viabilidade, projetos conceituais e básicos de ferrovias, metrôs, portos e grandes obras viárias.
  • Dados e Citação:
    • Um estudo da Associação Brasileira de Empresas de Projetos e Consultoria de Engenharia (ASSEPC), citado pelo Jornal do Comércio, é claro: “Há uma dominância de empresas estrangeiras nos projetos de engenharia de alta complexidade no Brasil. Enquanto as nacionais atuam em projetos de edificações e infraestrutura local, as estrangeiras ficam com a fatia mais nobre e lucrativa: o planejamento e a concepção das grandes obras de infraestrutura nacional.”
    • Consequência: Isso significa que as soluções técnicas, os padrões tecnológicos e até a definição de custos e prazos para as obras mais importantes do país são estabelecidos por entidades cujos centros de decisão e inovação estão no exterior. O Brasil se torna um mero “aplicador” de soluções pré-concebidas.

O Desmonte da Capacidade de Planejamento do Estado

Este é o ponto mais crítico. Paralelamente à ascensão das consultorias estrangeiras, ocorreu um sistemático esvaziamento dos órgãos públicos de planejamento. O Estado brasileiro perdeu a capacidade de ser o formulador e fiscalizador técnico dos seus próprios projetos.

  • Órgãos Estratégicos Esvaziados:
    • Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT): Historicamente carente de recursos, o DNIT viu seu quadro de engenheiros especialistas se esvaziar, tornando-se excessivamente dependente de terceirizados para tarefas essenciais de fiscalização e projeto.
    • Empresa de Planejamento e Logística (EPL): Criada para ser o braço técnico de planejamento logístico do país, a EPL foi extinta em 2019 durante o governo Bolsonaro, e suas funções foram absorvidas pelo Ministério dos Transportes, num claro movimento de desvalorização do planejamento técnico de longo prazo.
    • Órgãos Estaduais: Secretarias estaduais de transporte e obras públicas sofreram processos similares de perda de quadros técnicos permanentes e experientes.
  • Citação sobre o Esvaziamento do Estado:
    • Erminia Maricato, urbanista e ex-secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, é incisiva ao analisar o problema: “O Brasil optou por desmontar sua capacidade de planejamento estatal. O que temos hoje é um Estado raquítico, que não consegue formular seus próprios projetos. Ele fica refém das consultorias privadas, muitas vezes internacionais, que é quem detém o conhecimento. O poder público perdeu a capacidade de contestar, de fiscalizar com profundidade e de orientar o desenvolvimento de acordo com o interesse nacional.” (Declaração em entrevista à Revista Piauí).

O Caso Específico do Planejamento Urbano

A desnacionalização e o desmonte se repetem na escala das cidades.

  • Grandes Planos Urbanos: Planos de mobilidade, reurbanização de áreas portuárias e projetos de drenagem para grandes cidades são, com frequência, encomendados a consórcios internacionais. Enquanto isso, as secretarias municipais de planejamento operam com equipes mínimas e precarizadas.
  • Nabil Bonduki, professor da FAU-USP e ex-relator do Plano Diretor de São Paulo, alerta: “A terceirização do planejamento urbano para consultorias internacionais, sem um corpo técnico público forte para conduzir e adaptar esses planos à realidade local, gera soluções genéricas, ‘de prateleira’, que muitas vezes não dialogam com as complexidades sociais e territoriais das cidades brasileiras. Perdemos a capacidade de fazer um planejamento autóctone, que seja nosso.”

O Círculo Vicioso da Dependência Intelectual

A combinação desses dois fenômenos cria uma situação perversa:

  1. O Estado, sem corpo técnico próprio, precisa lançar mão de consultorias privadas para elaborar seus editais e projetos.
  2. Como os projetos nacionais mais complexos foram abandonados há décadas, apenas consultorias estrangeiras possuem o “know-how” recente exigido.
  3. A consultoria estrangeira elabora o projeto com suas próprias soluções e padrões, que naturalmente tendem a favorecer fornecedores e construtoras também estrangeiras no momento da licitação da obra.
  4. O Estado, sem engenheiros especialistas internos, tem sua capacidade de fiscalização comprometida, tornando-se refém do fornecedor.

Portanto, a desnacionalização das consultorias e o desmonte do Estado são duas faces da mesma moeda: a transferência do controle intelectual sobre o futuro da infraestrutura e das cidades brasileiras. Sem reverter essa tendência e reconstruir um Estado planejador e uma cadeia nacional de conhecimento em engenharia, o Brasil permanecerá na condição de colônia tecnológica, executando planos concebidos por outros, que nem sempre colocarão os interesses nacionais em primeiro lugar.

Um Cenário Híbrido e Desafiador

A desnacionalização não é absoluta. Ainda há fortes players nacionais em setores específicos (como saneamento e edificações) e empresas como a Novonor e a WTorre tentam se reerguer. A Embraer mantém seu núcleo de engenharia, embora sob parcerias complexas. A Petrobras, apesar de pressões, ainda é um centro vital de P&D.

No entanto, a tendência geral é clara: o Brasil passou de um país que dominava a execução de sua própria engenharia pesada para um que, em grande medida, terceiriza seu desenvolvimento para conglomerados globais. Reverter esse quadro exigiria uma política de Estado de longo prazo que combine:

  • Fortalecer as carreiras de Estado nas Engenharias e a capacidade de planejamento e fiscalização

  • Reconstrução das empresas nacionais de engenharia.

  • Políticas de conteúdo local em editais de licitação.

  • Apoio massivo à inovação e P&D nas universidades e empresas.

  • Uma estratégia geoeconômica clara que equilibre a necessária atração de investimentos estrangeiros com a preservação da capacidade técnica e da soberania nacional.

A engenharia brasileira, que já foi motivo de orgulho e instrumento de desenvolvimento, hoje opera em um contexto globalizado onde sua autonomia estratégica está significativamente reduzida.

Esta é a essência da desnacionalização da engenharia: a perda da capacidade do Brasil de comandar o próprio desenvolvimento industrial.

É urgente a necessidade de mobilização nacional e da convocação da 1a. Conferência Nacional da Engenharia para estabelecer um PLANO NACIONAL PARA A ENGENHARIA DO BRASIL

Miguel Manso é Engenheiro eletrônico formado pela USP, com especialização em Telecomunicações pela Unicamp e em Inteligência Artificial pela UFV, é diretor de Políticas Públicas da EngD – Engenharia pela Democracia. Coordenou a 1a. Conferência Nacional da Engenharia Ciência Tecnologia e Inovação e é pesquisador da Fundação Maurício Grabois.

Fonte: Engenharia pela Democracia (EngD).
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