Indústria química: sem condições de competir

FONTE: Valor Econômico

Falta de política estratégica leva cadeia produtiva nacional a perder competitividade aqui e no exterior e afasta investimentos

A indústria química brasileira, fornecedora de matérias-primas para produtos usados na área da saúde – além de provedora de diversos setores, da construção civil ao automotivo, passando pelo alimentício, eletrônico, farmacêutico, saneamento e outros –, viu a pandemia de Covid-19 desnudar sua relevância estratégica e seus desafios. Sexto colocado no ranking mundial, o parque químico nacional vem sofrendo há anos com os altos custos dos insumos e tributos, somados à desindustrialização do país. Resultado: perda de competitividade, crescimento da produção inferior ao da demanda, 71% de ocupação da capacidade atualmente e uma inundação de importados, que já são 46% do total consumido internamente.

Especialistas apontam para a necessidade de uma política industrial, com visão estratégica e de longo prazo para deslanchar novos investimentos em aumento de capacidade, desenvolvimento de tecnologia e inovação, ampliando a competitividade e a inserção global do setor. A Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim) está engajada, nos próximos anos, numa agenda para convencer os formuladores de políticas públicas da necessidade de uma política de Estado para o setor.

“Quase todos os segmentos industriais (96% deles) são dependentes do setor químico, e os custos elevados na base tornam a indústria brasileira como todo pouco competitiva”, alerta o presidente da entidade, Ciro Marino. Ele diz que o setor pode, em 20 anos, recuperar o que perdeu nas últimas décadas com a globalização, dobrando de tamanho e subindo para a quarta posição no ranking mundial.

Para isso, precisa atrair investimentos. A tarefa já tem meio caminho andado: o Brasil oferece acesso a matérias-primas como petróleo e gás natural, além de minérios e água, mas espera condições “ótimas” o quanto antes. Entre elas, estão a aprovação de uma reforma tributária em bloco, e não fatiada, até o fim do ano, a maturação da nova Lei do Gás – que tem estimativa de reduzir o preço do insumo – e o desenvolvimento do marco regulatório do saneamento. Este último pode trazer R$ 1 trilhão em negócios para o país, gerando oportunidades para o setor químico, fornecedor de materiais para tubulações e tratamento de água, como resinas plásticas e cloro, entre outros.

Apesar do “vento contra”, Marino lembra que o setor está entre os maiores do mundo. No ano passado, o faturamento atingiu US$ 101,7 bilhões (R$ 508,7 bilhões). Em dólares, houve queda de 14% sobre 2019. Em reais, pelo efeito do câmbio, a alta foi de 10,2%. A indústria química respondeu por 2,3% do PIB nacional e 11,7% do PIB industrial – o terceiro maior do segmento.

Em 2020, a fabricação dos produtos químicos de uso industrial (PQI)

– petroquímicos básicos, resinas, solventes industriais, intermediários para fertilizantes, entre outros, e que respondem por quase 50% das vendas do setor – teve elevação de 2,3% (em volume físico) sobre o ano anterior e a demanda subiu 11%.

Com a recuperação da economia, o período de janeiro a julho de 2021 registrou alta no índice de produção (ponderado pelos preços no mesmo período) dos PQI de 8,48%, enquanto a demanda ou consumo aparente nacional (produção mais importação menos exportações) aumentou 12,3% em relação ao mesmo período do ano passado.

Já no comércio exterior, os dados são negativos. Em dólares, o déficit na balança comercial setorial (contado todos os produtos) alcançou US$ 22,62 bilhões. Isso foi 35,4% maior do que o anotado em igual período do ano anterior. Em toneladas, essa diferença entre importação e exportação subiu 20,5%.

Para 2021, segundo a diretora de Economia e Estatística da Abiquim, Fatima Giovanna Coviello Ferreira, a expectativa é de um crescimento expressivo da demanda interna e da produção considerando os PQI – a amostra com a qual a entidade trabalha. A primeira deve ter alta entre 13% e 15%, enquanto a segunda, cerca de 10%. Estes números são puxados por praticamente todos os segmentos que utilizam itens do setor químico, como agronegócio, alimentos, por conta de sua utilização de embalagens, higiene e limpeza, hospitalar e farmacêutico, construção civil, infraestrutura e outros. As importações continuarão fortes, revelando as desvantagens competitivas do Brasil.

Marino cita alguns exemplos, como os custos dos insumos básicos: aqui, paga-se 300% a mais no gás natural e 400% acima na eletricidade em comparação aos produtores nos Estados Unidos. Na nafta petroquímica, um derivado do petróleo, a diferença para cima no caso brasileiro é de 14%. Além disso, as indústrias químicas concorrentes da brasileira recebem incentivos em diversos países. Há ainda a carga tributária. “No Brasil, ela está entre 40% e 45% para a produção, enquanto em países concorrentes a carga é de 20% a 25%.” Neste ano, o setor sofreu mais um revés, com o cancelamento do Regime Especial da Indústria Química (Reiq), aprovado pelo governo federal. Estabelecido em 2013, o Regime serve para a desoneração tributária sobre a compra de matérias-primas químicas básicas. O setor conviverá com o fim gradual do Reiq nos próximos anos, na expectativa da aprovação de uma reforma tributária adequada.

“Queremos alinhar o sistema tributário brasileiro e os incentivos o máximo possível ao que acontece lá fora, para que possamos competir em pé de igualdade”, destaca Marino. Já Fatima Giovanna aponta para o fato de que os US$ 2,2 bilhões em investimentos previstos para o período 2020-2024 não agregarão aumento na capacidade de produção. “Eles são basicamente para manutenção e pagamentos do que já foi feito. Não temos nenhum projeto greenfield”, observa. Greenfield são projetos que começam do zero.

Para ela, se a crise hídrica não afetar a indústria, a tendência é fechar o ano aumentando a utilização da capacidade para cerca de 80%. Fatima também não vê alta nas exportações. As importações, avalia, devem se manter no nível atual. “O câmbio alto poderia ter estimulado as vendas externas, mas, pela falta de competitividade, o setor não aproveita a oportunidade”, diz ela. O faturamento setorial, em reais, deve subir em 2021 pela soma da alta de preços e maior volume produzido.

Estudo da consultoria Bain & Company revela que, dos cinco fatores estruturais positivos – demanda interna por produtos químicos, disponibilidade de matérias-primas, competitividade de custos, infraestrutura construída otimizada e custo de capital e investimento – para o desenvolvimento da indústria, o Brasil apresenta de forma negativa os três últimos. O trabalho também indica que diversos países encaram a indústria química como estratégica e oferecem estímulos de bilhões de dólares para tornar seus pontos positivos em vantagens efetivas e vencer os negativos.

A Índia, por exemplo, tem políticas públicas para atrair investimento estrangeiro, imposto reduzido para compra de nafta petroquímica, financiamento e infraestrutura para desenvolver polos petroquímicos. A China aplica um plano estratégico de dez anos para direcionar incentivos a mercados com impacto na demanda local de químicos, planos quinquenais centrais com diretrizes gerais para o desenvolvimento do setor e incentivos locais.

Outra asiática, a Coreia do Sul, desenvolve infraestrutura, incentiva conglomerados industriais integrados, oferece subsídios fiscais para atividades de P&D de produtos químicos e reembolso de impostos de importação sobre matérias-primas utilizadas em produtos exportados.

Nas Américas, o exemplo são os Estados Unidos, que fecham contratos públicos para compras de medicamentos produzidos no país, dão subsídios fiscais federais para indústrias fornecedoras de matéria-prima, como óleo e gás, entre outros.

Rodrigo Más, sócio da Bain & Company, diz que, além da desindustrialização, a desnacionalização brasileira– exemplificadas na venda recente da Oxiteno, fabricante de especialidades químicas, para a tailandesa Indorama, e a possibilidade de a Braskem, produtora de resinas, ser negociada para grupos estrangeiros – é foco de preocupação, já que a indústria química possui um papel importante em viabilizar outras atividades da cadeia produtiva. Segundo ele, reverter o quadro atual requer o reconhecimento do setor como estratégico.

“É preciso visão de longo prazo e políticas públicas viabilizadoras”, avalia. Más lembra que o encerramento gradual do Regime Especial para a Indústria Química (Reiq) colocará as empresas brasileiras em situação competitiva ainda mais desvantajosa nos custos de produção. “Com o efeito da pandemia e as tensões geopolíticas que vêm ocorrendo, a indústria vem sofrendo efeitos pela ótica regional. É preciso fortalecer a cadeia local, destinando investimentos para que se reduza a dependência das cadeias globais”, avalia o consultor.

Outro estudo, da Fundação Getulio Vargas, mostra que a revogação do Reiq fará o setor químico deixar de produzir entre R$ 2,7 bilhões e R$ 5,7 bilhões, gerando redução de cerca de R$ 11,5 bilhões por ano no total da cadeia. No PIB, a perda chega a R$ 5,5 bilhões anuais, com o fechamento de 85 mil postos de trabalho, além de uma redução de R$ 3,2 bilhões na arrecadação.

“A indústria química brasileira é viciada no mercado interno e muito dependente das multinacionais, não conseguiu ter um polo dinâmico de inovação, pesquisa e desenvolvimento que conquistasse o mundo, como a China e a Índia estão fazendo e a Coreia do Sul fez”, alerta o economista Paulo Gala, da Fundação Getulio Vargas, de São Paulo. Para ele, o setor não conseguiu alcançar uma economia de escala e maturidade tecnológica suficiente para ter uma inserção relevante no mercado internacional.

Por isso, Gala vê a indústria química nacional numa encruzilhada: ou avança, ganha escala, vai para o mundo e se consolida ou regredirá, com o aumento da desindustrialização. “O que, aliás, é o que acontece com todos os setores industriais brasileiros”, frisa o economista. Ele lembra que a pandemia de covid-19 despertou diversos países para a importância estratégica do setor químico, que ganhou programas de incentivo.

Já o governo brasileiro, acrescenta, abandonou a perspectiva de dotar o país de uma política industrial, tornando a trilha para o avanço da indústria mais difícil. No entanto, nem tudo são trevas. O economista vê a área de sustentabilidade, que traz a reboque a chamada química verde, produzida a partir de matérias-primas e insumos de fontes renováveis, como promissora no Brasil. “Temos potencial para avançar nessa área”, destaca.

Uma pesquisa da consultoria Deloitte, denominada Agenda 21 e que envolveu 28 empresas químicas que atuam no Brasil, revelou que 82% delas pretendiam ampliar investimentos em treinamento, capacitação e formação de funcionários; o mesmo índice dos que planejavam ampliar os valores de investimentos em pesquisa & desenvolvimento. Um grupo de 79% disse pretender adquirir ou substituir máquinas e equipamentos, 75% estavam para lançar novos produtos, 37% pretendiam ampliar o espaço físico de produção e 19% queriam abrir novas unidades de produção no país.

“A indústria química possui muitos segmentos, e em cada um de seus subsetores apresenta uma realidade própria ditada pelas diferentes situações de mercado”, destaca Valmir Passos, sócio da Deloitte. Como exemplo, ele cita a demanda aquecida por alguns insumos da construção civil e por outros, específicos para material de saúde, oriunda da pandemia da covid-19.

E com a demanda em alta, veio uma enxurrada de importações, mais competitivas.

Para Passos, o déficit na balança comercial do setor, aliado ao baixo índice de ocupação, demonstra a importância de uma política industrial para dar segurança aos investimentos. Além disso, acrescenta, é necessário fomentar o comércio exterior, integrando a indústria nas cadeias globais e de valor. Na esteira desse processo, ele ressalta que, em um cenário global com indústrias cada vez mais competitivas, inovadoras e disruptivas, é preciso adotar estratégias baseadas em eficiência, com ênfase em tecnologia e inovação. “Os projetos de inovação têm potencial para se estender além das fronteiras da empresa, envolvendo demais agentes da cadeia da indústria, dos suprimentos até o consumidor final”, afirma. Boas práticas de governança, levando em conta aspectos ambientais e sociais, também são fundamentais para esse cenário global.