No mercado de gás, a temperatura não para de subir após intervenção do governo

Decreto do governo que prevê regular tarifa e quanto petrolíferas podem reinjetar gás no poço deve afetar produção de petróleo. Especialistas citam insegurança jurídica e contestam capacidade da ANP de conduzir processo

FONTE: Neofeed.

O mercado do gás natural do País deu uma reviravolta no último mês, resultado de três movimentos paralelos que tiveram a mão pesada do governo federal atuando por trás, com uma intervenção sem precedentes na cadeia do gás e como há muito não se via no setor produtivo nacional.

O objetivo do governo é forçar um aumento da produção de gás natural para reduzir o preço do produto. Para isso, a intervenção deve afetar planos de negócios de gigantes do setor que extraem petróleo, como Petrobras, Shell e Exxon.

Como a produção de gás é atrelada à exploração de petróleo, mais lucrativa, as petrolíferas reinjetam no poço boa parte do gás extraído junto com o óleo. O governo pretende reduzir o preço do gás criando normas limitando essa reinjeção. Embora assegure que não vai alterar contratos vigentes, o decreto deve impactar na produção atual e no faturamento das empresas atingidas.

Em julho, o Brasil produziu 150 milhões de metros cúbicos por dia (m³/d) de gás natural, mas 56% do gás extraído junto com petróleo foi reinjetado – bem acima da média mundial, de 25%. Com isso a quantidade disponível para o mercado é de 50,5 milhões de m³/d.

Estimativa do Ministério das Minas e Energia é que a produção total de gás natural no Brasil deva dobrar nos próximos 10 anos, com índice de reinjeção recuando para 42%.

Boa parte da cadeia do gás prevê um efeito positivo no médio prazo, pois vinha exigindo medidas para ter acesso ao gás a um preço justo – por causa da reinjeção, a oferta nacional é menor, forçando a importação do produto. Setores como de fertilizantes, petroquímico, cerâmica, indústria do vidro,  siderúrgicas, mineração, além de papel e celulose, são grandes consumidores de gás.

Mas há questões regulatórias pendentes que vão exigir negociações entre o governo e empresas afetadas que podem se arrastar por meses, risco de judicialização e desconfiança se a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) – que recebeu a incumbência de reorganizar o mercado – terá condições técnicas para amarrar todas as pontas soltas com a intervenção.

A primeira sacudida no setor ocorreu no fim de agosto, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o Decreto 12.153, que alterou outro decreto, de 2021, que regulamenta a chamada Lei do Gás (14.134/2021). Com isso, o governo deu à ANP poder para regular o preço do gás e determinar às empresas de petróleo a proporção do gás que pode ser reinjetada no campo.

Os outros dois movimentos ocorreram mais recentemente, num intervalo de dois dias. No dia 13 de setembro, em um evento carregado de simbolismo político, o presidente Lula inaugurou o Rota 3 – como é conhecido o terceiro gasoduto do pré-sal da Petrobras.

Com 355 km de extensão, o duto submarino vai escoar gás natural extraído no litoral fluminense até o Complexo de Energias Boaventura, novo nome do antigo Comperj (Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro) – símbolo da Operação Lava-Jato por suspeitas de corrupção nas obras.

O empreendimento voltado para o gás natural inclui, além do gasoduto, uma UPGN (Unidade de Processamento de Gás Natural) com duas plantas (trens). Cada uma terá capacidade de tratar 10,5 milhões de m³/dia, sendo que a primeira vai entrar operação em outubro.

O terceiro movimento já havia ocorrido dois antes da inauguração do Rota 3: a aprovação, pelo Congresso Nacional, do Programa Combustível do Futuro, que criou o marco legal de biocombustíveis, incluindo etanol, biodiesel, SAF, biometano e biomassa.

O programa obriga produtores e importadores de gás natural a comprovar, anualmente, a compra ou consumo de uma quantidade mínima de biometano em relação ao volume de gás natural que vendem ou consomem.

Poderes para ANP

As empresas que atuam no setor de exploração de petróleo e gás ainda estão analisando o decreto, que deixa muitas dúvidas, antes de estabelecer um diálogo com o governo. Sylvie D’Apote, diretora de Gás Natural do IBP (Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás), reconhece a preocupação com alguns aspectos da nova lei.

“A maior delas é que o decreto empodera a ANP para modificar os planos de desenvolvimento atuais, ou seja, engloba os campos em operação ou com infraestrutura sendo construídas, incluindo poços, dutos e até modelos de plataforma”, diz D’Apote. “Se essa mudança fosse feita apenas para projetos futuros, seria diferente.”

Segundo ela, eventuais alterações em campos de exploração para atender uma determinação da ANP poderá tirar de operação por três ou seis meses uma plataforma, com perda de petróleo e custos incalculáveis. Mais grave, de acordo com D’Apote, é a mudança abrupta de curso na forma como o mercado de gás estava sendo estruturado.

“O que o decreto deixa claro, por exemplo, é que não tem período de transição previsto, nada impede de a ANP pedir informações de capex de infraestrutura, processamento e transporte, no prazo de 180 dias, de um campo em funcionamento e com possibilidade de ser alterado”, afirma D’Apote.

A diretora do IBP acredita que o decreto, por essas razões, passam uma percepção ruim para os investidores. “Indica que qualquer projeto que se aprove com a ANP pode mudar lá na frente, e estamos falando de um setor que trabalha com orçamentos na casa dos bilhões de dólares e de longo prazo de recuperação.”

Outros especialistas ouvidos pelo NeoFeed apontam  novos obstáculos para que os objetivos do governo de aumentar a produção de gás e, com isso, reduzir o preço de oferta, sejam atingidos.

Jamille Moreira, coordenadora de Gestão e Consultoria em Gás Natural e Biometano na Thymos Energia, consultoria que atua no setor, admite que a intervenção do governo trouxe insegurança jurídica para as empresas que exploram campos de petróleo.

“As medidas a serem implementadas pela ANP precisam ser discutidas a quatro mãos com as petrolíferas”, adverte Moreira. Por isso, acredita, o decreto por si só não traz mudanças imediatas na oferta e preço do gás natural. “Isso vai ser construído no médio e longo prazo.”

Adrianno Lorezon, coordenador do Fórum do Gás, associação que reúne empresas do setor, diz que apesar da desconfiança com a letra fria do decreto, o direcionamento está correto. Porém, prevê dificuldades para a ANP conseguir implementar as diretrizes.

“A ANP, com uma equipe técnica reduzida, tem enfrentado dificuldades de regular o básico da Lei do Gás e agora dá um passo a mais, encarregada de dar o detalhamento de infraestrutura para definir a tarifa de referência”, adverte.

Betina Moura, especialista de gás da Argus – plataforma de inteligência para os mercados globais de energia e commodities – admite que há uma expectativa do setor de como ANP vai avançar nesse novo papel, em especial na gestão de quantidade de reinjeção das petrolíferas.

Isso porque o petróleo extraído do pré-sal precisa da reinjeção de gás natural, água e gás carbônico para manter a pressão do reservatório e aumentar a recuperação do óleo cru.

A especialista da Argus afirma que as mudanças ocorrem num momento de expansão de oferta de gás natural. Além da inauguração do Rota 3, Moura observa que a Argentina decidiu não renovar o contrato de importação de gás da Bolívia, que vence este mês.

“A Argentina está deixando de comprar 4 milhões de m³ diários, esse gás já está sendo negociado por empresas brasileiras, sem intermédio da Petrobras”, afirma. “Com a oferta inicial do Rota 3, serão mais 14 milhões de m³ diários disponíveis.”

Biometano em alta

Além da intervenção do governo, a aprovação do Programa Combustível do Futuro pelo Congresso Nacional também vai atingir aos produtores e importadores de gás natural. Mas Renata Isfer, presidente executiva da ABiogás (Associação Brasileira do Biogás), entidade que ajudou a articular o texto do PL aprovado, defende o mandato para o biometano.

“Entre os biocombustíveis, era o único que não tinha uma política pública definida, sua aprovação é importante para dar segurança jurídica para investimentos”, diz, lembrando que o biometano – produzido a partir da decomposição de materiais orgânicos de origem vegetal ou animal – é um braço importante para ajudar a descarbonizar o setor de gás.

De acordo com o programa aprovado, os produtores e importadores de gás natural devem comprar biometano ou Certificados de Garantia de Origem de Biometano (CGOB) – opção de selo verde -, numa proporção crescente de 1% a cada negociação de gás natural em 2026 até alcançar 10% em 2034.

Hoje são seis plantas em operação, produzindo 417 mil m³/d de biometano, segundo a ANP, e outras 20 novas plantas previstas para serem inauguradas em breve, acrescentando mais 1 milhão de m³/d de oferta. Isfer, no entanto, prevê uma ampliação no potencial de oferta de biometano de 34 milhões de m³/d no médio prazo.

Silvye D’Apote, do IBP, porém, adverte para os efeitos dessa política pública do biometano  sobre o preço e a competitividade do gás natural. Segundo ela, trata-se de uma tecnologia nova, com infraestrutura cara para transformar biogás em biometano, além da falta de escala do produto.

“A obrigação de produtores e importadores de gás natural comprarem biometano vai agregar mais um custo para a cadeia, uma vez que o biocombustível tem um preço elevado em relação à molécula de gás”, diz, acrescentando que as empresas produtoras e importadoras terão de criar equipes à parte para comprar e vender biometano e o certificado.

“Seria melhor dar incentivo de outras formas, pois o mercado interessado em descarbonizar supera a oferta de biometano”, acrescenta.