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Oportunidades e dilemas das políticas para o hidrogênio verde

Oportunidades nós temos. As políticas precisam estimular as decisões para que elas sejam utilizadas sem perda de tempo, analisa Sérgio Gabrielli

FONTE: EPBR

O hidrogênio (H2) de todas as origens, incluindo o hidrogênio verde, está sendo considerado como uma das principais armas para combater o aquecimento global. O H2 é o mais abundante gás da natureza. Entretanto, apesar de seu alto conteúdo energético, sua densidade é muito baixa, dificultando o seu transporte. Ademais, o gás geralmente está associado a outros átomos, como no caso da molécula da água (H20).

Ainda que haja imprecisão nas fronteiras da definição do H2 verde, ele é geralmente associado ao processo de eletrólise, a separação do H2 do O da água, utilizando fontes renováveis de energia para alimentar o processo, praticamente sem emissões de CO2.

Esse H2 verde tem o potencial de ser utilizado diretamente como energético ou como um importante descarbonizador em indústrias de difícil redução de emissões, como a siderurgia, a aviação e a navegação de longo curso, além da construção civil e o próprio transporte em geral.

A siderurgia, que emite 8% das emissões mundiais hoje, apresenta grandes oportunidades na substituição da redução direta do ferro para o aço, se o H2 verde for utilizado. Na mineração, o uso de derivados do hidrogênio como combustível dos caminhões off-road e trens de transporte de minerais é oportunidade de descarbonização.

Com o aperto das restrições regulatórias, a navegação e a aviação de longo curso enfrentam grandes desafios na substituição de seus combustíveis e o hidrogênio se apresenta como grande possibilidade, seja diretamente, como H2, ou em sua forma como amônia ou metanol, ou, ainda, outros derivados como combustíveis sintéticos.

No primeiro semestre de 2023, mais de mil projetos de grande escala para a produção de hidrogênio de baixo carbono existiam no mundo e reuniam investimentos de mais de US$ 320 bilhões. Porém, poucos tinham passado da fase de decisão final de investimentos (FID). Para atingir as metas de emissões líquidas neutras em 2050, no entanto, os investimentos devem superar US$ 460 bilhões até 2030.

Uso direto de H2 em motores

Motores utilizando diretamente o H2 verde como combustível podem ser uma boa alternativa aos motores de combustão interna (ICE), na comparação com veículos elétricos com baterias ou com células de combustível. As tecnologias de células de combustível precisam avançar mais para tornar economicamente viável sua utilização.

Há quatro tecnologias principais para impulsionar os veículos nos transportes e reduzir as emissões de CO2: os veículos elétricos a bateria (BEV), os movidos a células de combustível de hidrogênio (FCEV), os veículos de combustão interna a H2 verde (H2-ICE) e aqueles que utilizam biocombustíveis e combustíveis sintéticos em veículos ICE.

Em termos comparativos, um estudo de 2021 da McKinsey [1] destaca que os veículos elétricos conseguem a maior redução de emissões de CO2, em relação aos atuais combustíveis fósseis utilizados no transporte, porém eles exigem grandes investimentos em infraestrutura e impactam as fontes primárias de energia.

Biocombustíveis e combustíveis sintéticos

Os biocombustíveis e combustíveis sintéticos reduzem menos as emissões, mas demandam menor investimento tanto em infraestrutura geral quanto na conversão dos motores. Por outro lado, os biocombustíveis e combustíveis sintéticos continuam afetando a qualidade do ar, emitindo material particulado e óxidos de nitrogênio (NOx), o que não acontece com as outras rotas.

Ademais, alguns setores como aviação, navegação e transporte pesado impõem limites na eletrificação, seja por restrições ao tamanho das baterias, seja pela carga exigida para seus motores. É nesse contexto que aparecem os processos de conversão da eletricidade nos combustíveis sintéticos neutros em carbono para substituir os combustíveis fósseis.

As tecnologias Power-to-Fuel (PtF) estão avançando com potenciais oportunidades de impacto no setor de geração de eletricidade. O P se refere, em geral, à eletricidade gerada a partir de fontes renováveis e o F pode ser gás, líquido ou combustível.

As tecnologias PtMetano (PtCH4), PtMetanol (PtCH3OH) e PtAmônia (PtNH3) são as que estão com trajetórias mais promissoras. A partir do metanol, há rotas para a produção de e-SAF, e-Diesel e e-gasolina, sem utilizar o petróleo. A partir da amônia, há a produção de ureia e outros nitrogenados.

Os combustíveis sintéticos também são chamados de eletro-fuels ou e-fuels, derivados das reações do H2 verde com o N ou CO2 capturados do ar ou de processos produtivos, biogás ou matérias primas orgânicas.

A fase principal desse processo é a conversão da eletricidade em hidrogênio, utilizando os eletrolisadores para a separação da molécula de água em H2 e O. Os eletrolisadores mais antigos e de uso mais generalizado são os alcalinos, que têm algumas dificuldades de operar com fontes intermitentes de energia.

Custo de eletrolisadores ainda é obstáculo

Os eletrolisadores PEM (polymer electrolyte membrane) superam essa dificuldade, mas são de custo operacional alto, pois utilizam catalisadores de metais preciosos e são de baixa produção, com algumas dificuldades de operar com fontes intermitentes de energia. Os mais novos são os SOE (solid oxide electrolyzers), ainda em estágio inicial, de alta temperatura e com alto custo de implantação.

Há escassez de todos os tipos de eletrolisadores e seu elevado custo é um dos principais obstáculos para a expansão da produção do H2 verde. A escolha dos eletrolisadores e a redução dos seus custos hoje são decisões críticas na determinação da viabilidade econômica do H2 verde.

Atualmente, o custo do H2 verde é maior do que o H2 cinza. Entretanto, o custo das fontes renováveis de energia está declinando rapidamente. Os investimentos na ampliação da capacidade de produção de eletrolisadores e mudanças das tecnologias de catalisadores tendem a acelerar a convergência de custos, viabilizando a expansão das tecnologias PtH2.

Há, ainda, uma crescente preocupação com o uso da água e os impactos locais da produção de energia renovável. Tal processo impõe a ampliação das certificações, para além da redução das emissões, requerendo uma avaliação dos impactos sociais e ambientais da origem das fontes renováveis ao uso dos produtos ditos verdes.

Essas preocupações são legítimas, no entanto, não podem tornar-se barreiras não alfandegárias para limitar a entrada dos produtos nos maiores mercados consumidores.

Por outro lado, o risco de somente utilizar as fontes primárias de energia como o ar, o sol e a água para produzir o H2, principalmente para exportações, na forma de amônia por exemplo, reproduz o modelo primário exportador que tantos problemas criaram nas relações entre os países produtores e consumidores.

Os países produtores precisam ter políticas de expansão tecnológica das suas cadeias produtivas, principalmente nos setores utilizadores das novas tecnologias verdes. Novos setores consumidores e novos produtos precisam ser incentivados nos países produtores e não apenas nos centros consumidores.

No que se refere aos biocombustíveis – definidos pela regulamentação brasileira como aqueles derivados de biomassa renovável e utilizados em motores de combustão interna (ICE) ou em substituição de combustíveis fósseis em geração de energia –, há uma crescente interface conectando as necessidades da política energética, especialmente a segurança energética, e as políticas do uso da terra e da água para a produção das matérias-primas da biomassa usadas na sua produção.

SAF e e-SAF vão exigir investimentos

O tráfego aéreo é responsável por cerca de 2% das emissões de GEE. (ICAO, 2022). Para reduzir essas emissões, a aviação busca aumentar a eficiência de suas rotas, de seus motores, da operação dos sistemas aeroviários e a introdução progressiva do que se chama de combustível sustentável de aviação (SAF, em inglês).

Diferentemente do transporte terrestre, no aéreo, as especificações dos motores e a necessidade de controle de peso das aeronaves limitam o uso de baterias e motores elétricos nos aviões, além de restringir o tamanho dos tanques. Isso exige um combustível de alta densidade energética, resistente a incêndios, com pouca água, baixo ponto de congelamento e alto ponto de autoignição.

As aeronaves maiores utilizam hoje os derivados de petróleo QAV ou JET-A e JET-A1, enquanto a gasolina de aviação (GAV) e o álcool etílico hidratado são utilizados em aeronaves de menor porte.

O ponto de congelamento é a principal característica do QAV e a regulamentação do bioquerosene (b-QAV) o classifica como de origem de biomassa renovável, podendo substituir, total ou parcialmente misturado no QAV tradicional.

Exige, portanto, que suas características como combustível sejam semelhantes às dos combustíveis fósseis. Os combustíveis alternativos precisam ser do tipo drop-in misturados ao combustível atual, sem alterar suas principais propriedades.

Recentemente, o Parlamento Europeu aprovou uma lei que aumenta as exigências de combustível sustentável (SAF) misturado com o QAV para aviação. Até 2025, a mistura deve ser de 2%, para todos os voos da União Europeia, chegando a 5% em 2030, incluindo ainda uma submeta de 1,2% de eSAF, produzido a partir do H2 verde.

Para 2050, as metas são ainda mais ousadas:  70%, para o SAF e 35% para o eSAF. Não há hoje capacidade instalada no mundo para atender a essa demanda regulatória, exigindo investimentos na expansão da produção de SAF e e-SAF, onde o Brasil tem grandes oportunidades.

No Brasil, o PL 4516/2023 [apensado ao PL 4196/2023], apresentado pelo governo ao Congresso para unificar programas do Combustível do Futuro, cria o Programa Nacional de Combustível Sustentável de Aviação (ProBioQAV), estabelecendo um mandato de redução de emissões para a aviação brasileira que se inicia com o uso de 1% de SAF em 2027, chegando a 10% em 2037.

O ProBioQAV, apesar de ter o nome “bio” na sua sigla, se refere ao SAF, que tem várias rotas tecnológicas incluindo as de origem orgânica e as de origem termoquímica, sem componentes orgânicos. Na sua versão atual, se refere à Lei 9478/1997, que define o bioquerosene como derivado de biomassa renovável, porque, naquela época (final dos anos noventa), as tecnologias de combustíveis sintéticos ainda eram embrionárias.

No atual PL 4516/2023, o combustível sintético é definido (inciso XXXV do art. 17) como o “combustível produzido a partir de fontes alternativas a petróleo e biomassa que possa substituir parcial ou totalmente combustíveis de origem fóssil”.

Potencial brasileiro em diversas rotas de SAF

O Brasil tem condições de ser um grande polo produtor do SAF, tanto pela rota orgânica, em razão da disponibilidade do etanol e outras biomassas, como pela rota do hidrogênio verde, devido ao baixo custo de sua energia eólica e solar, principalmente no Nordeste, no litoral e no interior de seus estados, como a Bahia e Piauí.

Os estados do Sudeste são mais propensos à rota orgânica pela concentração de produção dos biocombustíveis nessa região, mas a expansão dos parques eólicos ocorre nos lugares onde os ventos e a insolação são mais atraentes: no Nordeste do Brasil. Por isso, a escolha das rotas dos novos combustíveis deve estar alinhada ao combate das desigualdades regionais e ao desenvolvimento do Nordeste brasileiro.

Assim, a produção dos combustíveis sintéticos, em especial do SAF, exige uma regulação favorável para o setor, sem impactar demasiadamente os custos da aviação e sem inibir as oportunidades de nova industrialização regional.

Um recente relatório da Comissão Especial para Debate de Políticas Públicas sobre Hidrogênio Verde, do Senado Federal, define o H2 verde como:

  • “hidrogênio renovável e de baixo carbono produzido a partir de eletrólise da água utilizando fontes solar e eólica, respeitado o critério de adicionalidade e observado os critérios de temporalidade ou de exigência de geração renovável mínima de 90% em bases anuais por subsistema”, assim como chama os combustíveis sintéticos de “derivados de hidrogênio” como os “produtos de origem industrial que tenham o hidrogênio, produzidas nas formas previstas neste artigo, como insumo no processo produtivo”

O Plano Nacional de Hidrogênio PNH2 ainda está em gestação no Executivo e não foi enviado em forma final para o Congresso. O Relatório da Comissão do Senado, acima citado, assim como as discussões de outras iniciativas legislativas no âmbito do Congresso, deixam uma grande imprecisão na definição desses produtos, criando incertezas para as decisões de investimentos.

O Brasil tem várias vantagens comparativas na transição energética, tanto nos custos das fontes renováveis de energia, como na disponibilidade de biomassa.

Entretanto, precisa acelerar as definições de suas políticas, deixando claro as diferenças das tecnologias que mais reduzem as emissões, como o H2 verde e seus derivados sintéticos, distintos das reduções menores das versões de transição dos biocombustíveis, e o H2 azul, assim como o tamanho da eletrificação de suas frotas. Sem essas definições mais claras, as oportunidades de investimentos podem se perder com desperdícios de incentivos em setores com menores impactos na transição energética.

Uma outra questão estratégica nessas políticas é a necessidade de montagem de um sistema nacional de certificação que possibilite aferir os graus de emissões ao longo do ciclo de vida dos produtos verdes, para atestar as suas diferenciações. Os sistemas hoje existentes são muito influenciados pelas políticas nacionais dos países consumidores e será necessário avançar numa taxonomia que reflita as características e as oportunidades do Brasil.

Oportunidades nós temos. As políticas precisam estimular as decisões para que elas sejam utilizadas e não se perca no tempo.

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.

José Sergio Gabrielli de Azevedo é professor aposentado da UFBA, ex-presidente da Petrobras e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis Zé Eduardo Dutra (Ineep).