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Novas estratégias para a abertura do mercado livre

Comercializadoras investem em geração própria e oferecem novos serviços para atrair o grande número de pequenas e médias empresas que deve migrar para o ACL a partir de 2024

FONTE: Editora Brasil Energia

A perspectiva de abertura total do ACL começa a provocar mudanças na oferta dos serviços de comercialização. E isso não é causado apenas por conta do previsto aumento expressivo na demanda de clientes – estão aptos a migrar em 2024, conforme estabelecido pela Portaria MME 50/22, 106 mil consumidores da alta tensão; e como proposto pela Consulta Pública 137, mais 7 milhões de empresas (indústrias e serviços) em baixa tensão em 2026 e  80 milhões de consumidores residenciais e rurais em 2028 poderão seguir o mesmo caminho.

A outra causa importante para as mudanças de estratégia em algumas comercializadoras é o próprio perfil do consumidor que deve entrar no mercado livre. Empresas médias e pequenas que em pouco mais de um ano poderão começar a migrar não têm o conhecimento e muito menos pessoal especializado e qualificado para entender e atuar no ACL. Daí a necessidade de as comercializadoras darem maior atenção a esse público, atuarem de forma ramificada pelo país, serem mais agressivas no marketing e incluírem em suas ofertas novos produtos para agregar e seduzir os clientes.

Esse movimento já está em curso em várias comercializadoras. A 2W Energia, com foco em médios e pequenos consumidores, é um exemplo. Prova inicial dessa estratégia é a empresa ter investido em geração de energia própria justamente para suportar essa nova demanda projetada para os próximos anos, para garantir melhores preços e rentabilidade em seus PPAs comercializados.

Parque eólico Anemus, da 2W, no Rio Grande do Norte (Foto 2W)

Com investimento de R$ 2,5 bilhões, a 2W está implantando dois parques eólicos, o Anemus, em Currais Novos (RN), de 138,6 MW, que entrou em operação no fim de dezembro de 2022, e o Kairós, no Ceará, de 261 MW, prometido para 2023. De forma inédita no país, os projetos foram em boa parte financiados, tomando como lastro para a captação da dívida centenas de PPAs com empresas de médio e pequeno porte, foco dos investimentos. A empresa conseguiu se financiar com debêntures de R$ 475 milhões, com prazo de 18 anos.

De acordo com o CEO da 2W Energia, Cláudio Ribeiro, a geração própria diminui o risco da gestão do portfólio de compra e venda de energia e permite melhor margem com a oferta de PPAs de longo prazo mais competitivos. Trata-se de estratégia já adotada por algumas outras comercializadoras, que investem em geração própria com o mesmo propósito, ou de geradores que entram no mercado de comercialização com a vantagem competitiva já embutida em seus perfis.

Mas essa não é a única opção para atender melhor esse novo contingente de consumidores. Outra é procurar entender o perfil dos novos clientes com estratégia comercial voltada a eles. Na visão de Ribeiro, esse mercado de carga média e não eletrointensivo que vai entrar no ACL é muito grande e espalhado pelo país, em sua maioria pequenas e médias empresas que se sentem impactadas por seus clientes, normalmente grandes empresas com exigências de sustentabilidade na cadeia de fornecedores. Na abertura para o grupo A (alta tensão) em 2024, a estimativa da 2W é a de que 40% sejam indústrias e o restante de comércio e serviços.

Cláudio Ribeiro, CEO da 2W Energia

Além da venda de energia, Ribeiro explica que a empresa precisa ter papel mais próximo de uma consultoria para encaminhar os clientes para a transição energética. Para atender essa demanda, que vai crescer muito a partir de 2024, a 2W já conta com 1800 consultores no país e tem ferramenta digital para aproximar e explicar a esses consumidores como é o mercado livre. “A maioria ignora como o ACL funciona”, explica.

Segundo Ribeiro, outra característica na oferta é assumir os investimentos para a migração e deixar os ganhos se restringirem às margens obtidas com os PPAs com média de cinco ou seis anos, que serão atrativos para os consumidores, e entre 15% e 30% mais baratos em comparação com o pago às distribuidoras. Mas a atratividade vale também para as comercializadoras, em comparação aos contratos fechados com grandes consumidores no longo prazo, ressalta o executivo. Além disso, a 2W também fornece selo de energia limpa para o consumidor, para atestar sua origem nos parques eólicos da empresa, que tem planos de hibridizá-los com solar, e ainda se habilitou como comercializadora varejista.

Comercializadores varejistas

Faz parte da preparação para o novo cenário também as comercializadoras se habilitarem como varejistas na CCEE, figura que representa todas as funções de consumidores menores, sem que estes precisem se tornar agentes na câmara. Até o momento, há 54 habilitadas, dentro do universo de 488 agentes comercializadores.

Para o presidente do conselho de administração da CCEE, Rui Altieri, o comercializador varejista visa principalmente ser uma rede de apoio para os consumidores menores, que não têm familiaridade com o setor. “E assegurar que os portfólios de contratos e os riscos inerentes à comercialização de energia estejam bem geridos”, disse.

Rui Altieri, presidente do CA da CCEE

Bom ressaltar, porém, que apesar das limitações atuais de demanda mínima de 500 kW, isso não significa que não existam empresas desse porte no ACL. Na verdade, segundo a CCEE, 50% do total das 30.460 unidades consumidoras que contratam energia no mercado livre, ou 15.365, têm demanda contratada inferior a 0,5 MW. Isso porque 17.630 unidades consumidores migraram em regime de comunhão, de fato ou de direito, reunindo cargas sob mesmo CNPJ.

Para Altieri, embora a previsão seja a de que a adesão ao ACL não seja total, dentro dos 90 milhões de unidades consumidoras do país, o varejista vai atender a alta tensão de pequeno e médio porte e os consumidores da baixa tensão, sem familiaridade com a dinâmica do complexo mercado de energia. “A operação oferece riscos, como qualquer livre negociação, e não faria sentido abrir o mercado sem as mínimas garantias de vantagens para quem tiver interesse em participar deste ambiente”, explicou.

Prontos para o crescimento

A primeira comercializadora livre do país, a Tradener, já se considera preparada para a abertura do mercado, sobretudo para a primeira nova leva de entrantes, da alta tensão, em 2024, público que deve atender como varejista. “Estamos preparados com energia, garantia de fornecimento, seguro e todos os outros tipos de serviços que o cliente queira, desde a migração até o planejamento”, disse o presidente da Tradener, Walfrido Ávila.

Walfrido Ávila, presidente da Tradener

Segundo ele, a ideia é ter o menos de burocracia possível para atender os médios e pequenos, que ficarão ao largo do mercado, sem precisar ser agentes da CCEE. Esse tipo de cliente, na sua análise, precisa ter bom desconto, atendimento rápido e garantia de preço, com contratos de até 8 anos. “Esse público não quer falar sobre energia, eles querem garantia e preço e focar em seus negócios”, diz.

Outro ponto favorável para a comercializadora atender o novo contingente de consumidores é o fato de estar presente em todo o país, hoje com clientes de todos os portes. Também para garantir bons preços, em contratos de longo prazo, a empresa tem investido nos últimos anos em geração própria, com PCHs e parques eólicos, com meta de chegar a 300 MW nos próximos anos.

Já a comercializadora Delta Energia, segundo seu vice-presidente institucional e regulatório, Luiz Fernando Leone Vianna, está se preparando e continuará a se preparar durante todo o ano de 2023 para atender um aumento na demanda de até 350% previsto com a abertura da alta tensão em 2024.

Luiz Fernando Vianna, VP
institucional e regulatório da
Delta Energia

Uma primeira ação da empresa foi investir em tecnologia, com a compra em março deste ano da empresa BestDeal, de Uberlândia (MG). Segundo Vianna, um dos produtos da empresa é um dispositivo instalado no consumidor que faz a leitura de todo o consumo, para permitir o gerenciamento quando ele estiver no ambiente livre. “Esse tipo de consumidor precisa de soluções taylor-made”, diz.

Um segundo aspecto que precisará ser aperfeiçoado pela comercializadora, continua o executivo, é a gestão do faturamento. Isso porque a prevista explosão de clientes demandará sistemas automatizados, ao contrário do que ocorre quando o portfólio limitado de consumidores em carteira pode até ser administrado de forma manual. “Isso não será mais possível”, explica.

Para complementar as ações, Vianna prevê a necessidade de um marketing agressivo para conseguir negociar com parte do potencial previsto de 106 mil consumidores de alta tensão que poderão acessar o ACL em 2024. O dirigente acredita que o universo de possíveis novos clientes inclui vários tipos de empresas, desde padarias, pequenos shoppings, indústrias e empresas de serviços, com contas de luz acima de R$ 10 mil.

Além disso, será fundamental, segundo ele, ter preço de energia competitivo, o que considera factível ser até 30% abaixo do pago junto às distribuidoras. Para isso, não está nos planos da Delta (que tem investimentos de 100 MW em usinas solares de GD) investir em usinas centralizadas de renováveis, como outros competidores. Isso porque, ainda segundo Vianna, o porte da empresa já dá poder de barganha suficiente para oferecer preços diferenciados ao mercado. A Delta Energia hoje transaciona 5 mil MW médios por mês.

ACL + outros serviços

Além da diversificação nas ofertas dos comercializadores tradicionais, a abertura também atrai o interesse de competidores de outras frentes de prestação de serviços energéticos para atuarem como agentes para migração e comercialização de energia no ACL.

Um primeiro exemplo ocorre com a Tecnogera, empresa especializada em segurança energética que atua por meio de ativos próprios de 500 MW em geração térmica, com geradores a diesel/biodiesel e gás natural/biogás, que funcionam em variados tipos de clientes industriais ou de serviços, para operação emergencial ou de back-up.

A partir de janeiro de 2022 a empresa passou a atuar também como comercializadora de energia, agregando em suas ofertas de curto e longo prazo de segurança energética também PPAs no mercado livre. No período, segundo disse à Brasil Energia o diretor de novos negócios da Tecnogera, Jorge Moreno, já foram fechados dez contratos, com 10 MW médios no total, nos quais o cliente também tem a garantia de segurança com seus geradores. A meta é chegar em 2026 com 200 MW médios de energia negociada no mercado livre.

Além de entregar para o cliente energia do mercado livre, de acordo com Moreno, a empresa também passou a agregar a chamada garantia física de entrega, com geradores emergenciais em caso de algum problema em subestação, no transformador ou por conta de um apagão.

Jorge Moreno, diretor de novos
negócios da Tecnogera

As ofertas do pacote de segurança energética e mercado livre são em dois modelos. O primeiro é o de seguro energia, pelo qual os geradores não ficam instalados no cliente, mas, no caso de necessidade, um contrato de atendimento garante a entrega do sistema em prazo acordado. O segundo é o de garantia física, com geradores instalados no local como back-up. Esses casos se voltam para clientes cuja operação não tolera a interrupção de energia, por exemplo data centers, shoppings, hotéis ou hospitais.

De acordo com Moreno, o planejamento da empresa inclui ter também geração própria para oferta de contratos no ACL para clientes na alta tensão. “Para isso, há estudos de parcerias com outros grupos para construção de parques renováveis, seja eólica, solar ou PCHs, e projetos greenfield ou brownfield de usinas a biogás. “Conforme o negócio se desenvolver, vamos ter oportunidades de longo prazo para a montar a própria geração renovável”, diz Moreno.

Também faz parte do planejamento a qualificação da empresa dentro da CCEE como comercializadora varejista, para preparar principalmente a oferta para consumidores na baixa tensão, cujo cronograma estudado pelo MME, por meio da Consulta Pública 137, contempla a abertura em 2026 (comerciais e industriais) e 2028 (residenciais e rurais).

Um segundo exemplo de empresa consolidada em outras áreas de serviços energéticos e que se habilitou como comercializadora varejista é a francesa GreenYellow. Com atuação em geração solar distribuída, eficiência energética, serviços em energia e eletromobilidade, a empresa passou a ofertar a migração para seus clientes. A ideia é apoiar as empresas em todo o processo, desde a denúncia até a negociação dos PPAs.

Marcelo Varlese, diretor comercial da GreenYellow

Um exemplo ocorre em contratos com o Grupo Pão de Açúcar, com quem a empresa tem mais de 500 projetos de eficiência energética. Segundo o diretor comercial da GreenYellow, Marcelo Varlese, há quase dois anos a empresa tem apoiado o grupo também com migração de unidades para o ACL com a assinatura de PPAs. Também é possível citar negócios com a rede de supermercados Assaí, com quem a empresa tem soluções de telhados solares e carregadores elétricos instalados, com PPAs assinados no mercado livre, além de negócios similares com o grupo de academias BioRitmo e a indústria de alimentos Kim Pães.

De acordo com Varlese, a comercializadora faz parte da unidade de serviços em energia, mas as ofertas podem envolver uma combinação de todas as soluções disponíveis. A meta é fortalecer o portfólio para atender os novos clientes da alta tensão, já para o caso da abertura para consumidores menores da baixa tensão a GreenYellow ainda avalia como vai atuar, já que seu foco é o chamado B2B (business to business).