Eólica offshore pode gerar conflito com falta de planejamento espacial marinho
FONTE: Energia Hoje
Entre as várias questões que ainda pairam sobre os interessados no desenvolvimento das eólicas offshore no Brasil, uma delas não tem sido muito abordada, mas tem potencial para criar conflitos sérios no futuro.
Trata-se da até agora pouca preocupação do país em criar um ordenamento para o uso do mar, o chamado Planejamento Espacial Marinho (PEM), cujas diretrizes e guias de implementação foram desenvolvidas pela Unesco, implementadas por vários países, de forma ainda mais intensa depois do advento dos primeiros parques eólicos em alto mar, mas que ainda engatinha no Brasil, apesar de o país ser signatário do acordo global que originou esse método de planejamento para a exploração sustentável dos oceanos.
Embora no começo deste mês o BNDES tenha feito acordo de cooperação com a Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (Secirm), liderada pela Marinha, para financiar um projeto piloto do PEM na região Sul, e ainda o estado do Ceará esteja elaborando um apenas para sua costa, a avaliação de alguns especialistas é a de que o atraso do país nessa questão representa um risco para o desenvolvimento da eólica offshore.
“Sem o PEM, há um risco muito grande de conflito e de judicialização com os vários agentes econômicos que interagem no espaço marinho, como pesca, turismo, defesa e navegação mercantil”, disse ao EnergiaHoje o líder da área de renováveis da filial brasileira da consultoria Ramboll, Hugo Lamas.
Como abordagem preventiva, resultante de um arranjo de governança a partir das diversas atividades econômicas e levando em conta as áreas de preservação, o PEM, explica Lamas, leva muito tempo para ser feito através das guias da Unesco que orientam as discussões entre todos os envolvidos. “Somente a partir daí é possível criar políticas públicas para o uso do mar de forma sustentável”, diz.
Como exemplo, o consultor cita a questão da navegação mercante. “As rotas dos navios não são reguladas por alguma autoridade nacional ou internacional. Elas são definidas pelos próprios transportadores, que procuram as menores distâncias para consumir menos combustível. Sem o planejamento, não há como saber se um parque eólico ficará no meio do caminho dessas rotas”, explica. Para ele, caso isso ocorra, o que é muito possível por conta da quantidade de rotas, haverá potencial para judicialização.
A possível prevenção para esses conflitos pensada pelo decreto das eólicas offshore (10.946/2022) é o requerente em desenvolver os projetos pedir a nove instituições públicas as chamadas DIPs (Declaração de Interferência Prévia), para atestar se o local pode ser objeto da atividade de energia eólica sem afetar as áreas de suas competências. Na lista, estão os Comandos da Marinha e da Aeronáutica, os ministérios da Agricultura, Turismo, Infraestrutura, Ibama, ICMBio, ANP, Anatel. Todos esses órgãos emitem as DIPs para que, após isso, a Secretaria de Patrimônio da União dê o aval para a cessão da área (que pode ser planejada, quando requerida pelo MME para licitar a área, ou independente, pedida diretamente por uma empresa).
Mas essa determinação das DIPs não seria suficiente para evitar conflitos, na opinião do líder da área de geosoluções da Ramboll, Marcelo Brizzotti. “As declarações atendem ao decreto. Mas há uma série de partes interessadas que não são representadas pelas instituições oficiais. O PEM absorve uma infinidade de usos tradicionais e mesmo assim muitos estudos no mundo comprovam que, ao se deixar de fora uma comunidade do planejamento, ela se isola completamente”, diz.
Para Brizzotti, é preocupante o Brasil sequer ter começado a fazer o projeto piloto do PEM já prometido há anos no Sul, enquanto na Europa os países se organizaram para estender o planejamento em nível regional, visto a interferência e uso econômico do mar extrapolar as fronteiras entre eles. Isso ocorreu em iniciativas para os países do Mar Mediterrâneo (Espanha, Itália, Grécia, Eslovênia e Malta), Mar Báltico (Finlândia, Suécia, Estônia, Lituânia, Alemanha, Polônia e Dinamarca), dos arquipélagos das ilhas do Açores e Madeira (Portugal) e Canárias (Espanha) e para países europeus do Atlântico Norte.
Segundo Brizzotti, apenas para fazer o PEM em Portugal, um país com costa muito menor do que a brasileira, foram necessários sete anos para se chegar a um estágio maduro do planejamento. “E não adianta ter iniciativas isoladas, como a do Ceará, que está preocupado por conta de seus planos com eólica offshore. Se não houver sinergia no planejamento do país, que na verdade precisaria ser regional como a Europa está fazendo, a falta de planejamento do espaço marinho vai causar problemas com a prevista expansão da nova fonte”, conclui.