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O gás natural (também) é nosso!
Brasil precisa das alvissareiras iniciativas governamentais para reduzir os gargalos de infraestrutura, diminuir os níveis de reinjeção e ampliar a oferta de gás natural, escrevem Gustavo de Marchi e Ana Paula Carvalho
FONTE: EPBR
O potencial produtivo de gás natural, principalmente aquele oriundo do pré-sal, tem sido objeto de discussão na nova política pública de gás que está sendo desenhada pelo governo.
Muito se questiona a respeito do aproveitamento desse energético, fundamental para que o Brasil cumpra os compromissos assumidos mundialmente em relação à redução das emissões de CO2, haja vista a sua importância para a efetiva transição energética em âmbito nacional e global.
Entretanto, em que pese a demasiada adoção do clichê “o gás é o combustível da transição”, nesse momento o que precisamos, de modo premente, é garantir a redução da emissão de gases poluentes por meio da utilização disseminada do gás natural em substituição a outras fontes energéticas mais poluentes.
Neste contexto, ciente da importância do adequado aproveitamento deste recurso energético, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) ao publicar o Plano Decenal de Expansão de Energia 2032 nos traz uma estimativa de uma produção bruta de 323 milhões m³/dia, desconsiderando os descontos de consumo próprio, injeção, queima e perdas.
Considerando o ambiente do pré-sal, essa projeção aponta para uma produção estimada no ano de 2032 de 252 milhões m³/dia.
Contraditoriamente, apesar do crescimento acelerado da produção de gás natural, tal aumento não se reflete na sua disponibilidade e preço aos consumidores finais.
Isto porque se observa elevada média de reinjeção do gás produzido. De fato, o último Boletim Mensal de Acompanhamento da Indústria do Gás Natural, divulgado pelo Ministério de Minas e Energia (MME) apresenta uma reinjeção média de 73,17 milhões de m3/dia para uma produção média de 142,48 milhões de m3/dia [1].
Ou seja, mais da metade do gás produzido no país diariamente é reinjetado para os poços.
Para se dar uma escala adequada do que significam tais montantes reinjetados, a importação de gás natural da Bolívia e a regaseificação de Gás Natural Liquefeito (GNL) representam aproximadamente 18,45 milhões de m³/dia segundo dados da pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
Ao se observarem os índices apresentados pela ANP, o questionamento lógico que surge é acerca dos motivos pelos quais ainda mantemos altos patamares de reinjeção se, mesmo com uma produção crescente, ainda necessitamos da importação do energético.
Em recente reunião realizada no MME, contando com a presença de representantes do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) e da EPE, discutiu-se a necessidade de criação de mecanismos que ampliem a oferta de gás natural, buscando-se alternativas para a ampliação tanto do aproveitamento quanto do escoamento do gás natural do pré-sal.
Sob tal enfoque, a discussão incluiu a redução da controvertida reinjeção, sempre objetivando a diminuição dos preços do energético, de modo a favorecer a obtenção de benefícios ambientais e a promoção da competitividade da indústria brasileira.
Pondera-se a necessidade urgente de se criar uma política nacional para melhorar o aproveitamento do gás natural, o que potencializaria o protagonismo já exercido pelo país na transição energética, focada no desenvolvimento da indústria nacional, tendo em vista os benefícios que adviriam para diversos setores, como o petroquímico, ceramista, siderúrgico, dentre outros.
Com base nessas preocupações, o MME instituiu o Programa Gás para Empregar com o objetivo de aumentar a disponibilidade de gás natural para esses setores produtivos, com preço competitivo, contribuindo assim para a geração de empregos e a melhoria da economia, além, é claro, da tão almejada segurança energética.
Tudo isso certamente contando com o potencial produtivo elevado que possuímos e o aproveitamento ótimo do energético, principalmente das reservas do pré-sal, que são capazes de produzir benefícios econômicos que extrapolam os setores diretamente beneficiados, tendo efeitos sistêmicos tais como o aumento da arrecadação tributária, a diminuição da dependência externa, a redução dos preços, bem como a geração de empregos, além de benefícios ambientais decorrentes do uso disseminado do gás natural.
Nesse cenário, crescem as indagações acerca dos motivos pelos quais a reinjeção ainda apresenta números tão elevados.
Quais as razões, de fato, para tais índices?
Sabe-se que, predominantemente, a produção de gás natural proveniente do Pré-sal é de gás associado, o que justifica, em parte, a necessidade de reinjeção com o objetivo de reduzir as emissões de CO2.
De fato, ainda existem limitações tecnológicas que possam possibilitar a separação dos contaminantes do gás natural a ser produzido, sem que isso represente um aumento das emissões. Todavia, a qualidade do gás, embora significativa, não é único fator determinante para a decisão de reinjeção.
Não olvidemos que a reinjeção também é utilizada em todo o mundo como uma técnica importante para acrescer a produção petrolífera, sendo um forte mecanismo empregado para proporcionar um aumento da pressão com efeitos na movimentação dos fluidos na jazida, elevando, assim, a extração do óleo e gerando uma maior viabilidade econômica dos poços.
Deve-se destacar que essa elevação da produção é significativamente mais efetiva quando a reinjeção ocorre por meio da utilização do gás ao invés de água, fator que pode ser determinante para a adoção de tal técnica.
Nesse ponto é importante enfatizar que não se está menosprezando a decisão pela reinjeção sob tal perspectiva; trata-se, apenas, de uma decisão comercial que possui suas razões de ser, tendo em vista um viés estritamente econômico.
Ademais, não se pode ignorar que a reinjeção acaba por ser também uma alternativa para se evitar a queima do gás, em razão de ausência de mercado que possa absorver tal produção, o que geraria impactos severos, principalmente em um momento em que muito se preza pelas questões ambientais, em que muito se fala em redução de emissões, em transição energética, conforme já abordado.
Entretanto, analisando esse cenário, a pergunta que fica é se a reinjeção pode ser apontada como uma das causas que impossibilita o aumento da oferta do energético.
Reconhece-se que o incremento da disponibilidade de gás natural é necessário para que haja uma demanda firme pelo gás natural.
País precisa de urgência para solucionar infraestrutura
Mas, para que isso ocorra, inevitavelmente somos levados a um ponto crucial, e é nesse quesito que precisamos de uma análise ampla e no qual podemos ter a iniciativa governamental voltada para uma atuação mais efetiva, pensando em soluções harmônicas – principalmente após a aprovação da chamada Nova Lei do Gás (sancionada como Lei nº 14.134, de 8 de abril de 2021), que, conforme muito se falou, tinha como um dos seus principais objetivos aumentar a competitividade.
Contudo, para que isso ocorra é necessário que se resolva um grande gargalo: o déficit de infraestrutura, que impede o escoamento da produção. Sem a expansão das infraestruturas essenciais não há que se falar em aumento produtivo viável.
Durante as discussões legislativas que cercaram a processo de aprovação da Lei nº 14.134, falava-se muito que a nova lei visava atrair investimentos em infraestrutura de escoamento, processamento, transporte e distribuição de gás natural, e é justamente essa ausência de infraestrutura que vem sendo apontada como um dos entraves para que haja o aumento da produção, com a consequente redução da reinjeção.
De nada adianta falar-se em potencial produtivo nacional de gás natural, apontar a reinjeção como, em parte, desperdício do energético, se não temos como garantir o escoamento de uma produção que, mais do que potencial, representa uma certeza de que poderia ser incrementada de forma bem mais efetiva.
Nesse cenário, muito se tem noticiado, de forma recente, acerca do esgotamento das reservas de gás natural na Bolívia, o que acarretará a interrupção das exportações do energético para o Brasil.
Evidencia-se, portanto, que não há mais espaço para a busca de uma solução a longo prazo para o aumento da produção e do escoamento nacional. A questão é de extrema urgência, o que, por um lado, também pode representar um propulsor para que as medidas necessárias sejam definitivamente implementadas.
Sabe-se que o Brasil possui grande potencial na produção energética advinda de fontes renováveis, mas não se pode menosprezar o potencial do gás natural como garantidor da segurança energética, tendo em vista o grau de intermitência dessas fontes, como a solar e a eólica.
Assim, o que precisamos é garantir mecanismos seguros de que a elevação da produção encontrará mercado – e já estamos atrasados nesse quesito, considerando que os compromissos ambientais já firmados, e que tendem a ser mais rigorosos nos próximos anos, nos levarão à redução do uso de combustíveis fósseis como uma etapa para sua substituição por completo.
Encontrar mercado, bom salientar, já não nos parece ser mais um problema a ser enfrentado. Contudo, necessitamos com urgência que as limitações na infraestrutura sejam solucionadas.
Resta claro que a iniciativa privada tem um papel primordial para fazer frente a esses investimentos. Mas sem o incentivo e o apoio governamental, esse caminho será muito mais tormentoso.
E é isso que esperamos das alvissareiras iniciativas anunciadas pelo governo.
Afinal, o gás natural também é nosso!
Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.
Gustavo De Marchi é sócio do Décio Freire Advogados (DFA) e Consultor Jurídico da Abegás. Vice-presidente presidente da Comissão de Energia da OAB/RJ. É titular do Corpo de Árbitros na Câmara FGV de Conciliação e Arbitragem, vice-presidente do Setor Elétrico do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA), Coordenador Nacional da Temática de Direito da Energia na Escola Nacional de Advocacia do Conselho Federal da OAB e consultor jurídico da FGV Energia.
Ana Paula Carvalho é advogada sênior do escritório DFA. É graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pós-graduada em Direito Processual Civil, pós-graduada em Direito do Estado, pós-graduada em Direito do Petróleo e Gás. Membro da Comissão Especial de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis da OAB/RJ. Árbitra nomeada pelo CBMA – Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem.