Mercado livre não tão livre assim

FONTE: Brasil Energia

IBP e Abrace veem obrigações excessivas à migração do consumidor do mercado cativo para o mercado livre, enquanto Abegás teme o risco de “práticas predatórias”

Enquanto produtores e grandes consumidores industriais de gás veem o caminho da migração do mercado cativo para o mercado livre minado por dispositivos burocráticos, as distribuidoras estaduais temem que “regulações oportunistas” abalem os alicerces do “condomínio” dos consumidores cativos.

De um lado, IBP e Abrace avaliam que as regulações estaduais para o mercado livre são, em muitos casos, mais severas do que àquelas do mercado cativo. De outro, a Abegás afirma que não é possível falar em mercado livre enquanto houver um agente dominante – diga-se, a Petrobras – dando as cartas.

O conflito não trata apenas de uma questão econômica, mas sobretudo conceitual, enraizada na letra da lei, onde nem mesmo o novo marco legal do gás parece equacionar. Afinal, nos serviços de gás canalizado a prerrogativa é dos estados, mas a comercialização da molécula está submetida à regulação federal.

Até aí, parece não haver dúvidas. Mas, no que se segue, a coisa pode complicar. Enquanto uns defendem que as amarras estaduais em relação à figura do comercializador invadem a competência federal, outros interpretam que a União está avançando sobre prerrogativas dos estados.

O gerente de Gás Natural da Abrace, Adrianno Lorenzon, alega que os estados estão criando mais dificuldades do que facilidades sob pretexto de estarem protegendo seus mercados cativos, suas distribuidoras. O mercado livre, portanto, não seria nada livre, já que uma série de medidas estão sendo adotadas para sabotá-lo, onerando o custo final para desincentivar a migração.

Para tal, afirma Lorenzon, os estados exigem uma série de requisitos para cadastrar um comercializador interessado em atuar no mercado livre, mas o mesmo não ocorre quando interessa à distribuidora estadual adquirir a molécula deste agente. “A ANP tem uma certa culpa nisso, pois está permitindo que os estados avancem em prerrogativas que não lhes competem. A comercialização é regulada em âmbito federal”, alerta.

Dificulta ainda o fato de não haver harmonização das regulações estaduais. Por vezes, os traders são obrigados a abrir filiais para atuar em determinados estados, como em São Paulo. Nessa mesma unidade da federação, garante o executivo, há imposição de cláusulas nos contratos firmados no mercado livre.

Conflitos operacionais (e constitucionais)

Nos termos da Nova Lei do Gás, o consumidor livre é aquele que, sob a legislação estadual, tem a opção de adquirir o gás de qualquer agente comercializador autorizado pela ANP. Mas o que acontece, por exemplo, se esse consumidor está inadimplente com o comercializador e adimplente com a distribuidora?

A indagação é do gerente de Mercado e Estratégias da Abegás, Marcelo Mendonça. Para o executivo, cria-se um conflito operacional para a distribuidora quando um grande consumidor, conectado ao seu sistema, tem o seu fornecimento cortado pelo comercializador por falta de pagamento.

“Imagine que o consumidor está quite com a distribuidora, mas o supridor interrompe a entrega do gás por falta de pagamento. Se isso ocorre, o consumidor passará a retirar gás do sistema, enquanto os demais serão penalizados, uma vez que terão que pagar pelo gás de ultrapassagem. Por isso, existem regras que precisam ser reguladas e apaziguadas dentro dos estados para a própria operação do sistema”, disse.

O diretor de Abegás afirma que a preocupação reside em “práticas predatórias” nas quais o consumidor livre quer reduzir ou mesmo deixar de pagar a margem da distribuidora, onerando custos aos demais clientes do mercado cativo.

“Até aqui, o único movimento que observamos no mercado livre foi o da Gerdau, que vai comprar o gás diretamente da Petrobras. Nesse caso, o consumidor não está migrando para o mercado livre, mas para o agente dominante. Então, qual ‘mercado livre’ existe se o que ocorre é a manutenção de barreiras de mercado onde o único consumidor livre só pode adquirir gás do agente dominante?”, indaga Marcelo Mendonça.

Nó górdio

Dentro do ambiente de contratação livre, o consumidor adquire a molécula de um comercializador e permanece pagando a tarifa pelo uso do sistema de distribuição. Isto favorece não apenas o consumidor livre, mas também a própria distribuidora, já que diminui a sua exposição ao risco da compra e venda do gás. Mas, à medida que os grandes clientes industriais experimentarem maior liberdade, o que acontecerá caso se deem conta de quanto custa, de fato, o serviço de distribuição?

O modelo empresarial das distribuidoras poderia ruir como um castelo de cartas se todos os grandes consumidores optassem por construir e implantar, diretamente, instalações e dutos para o seu uso específico, mediante celebração de contrato que atribua à distribuidora de gás canalizado estadual a sua operação e manutenção.

E qual é a explicação? As distribuidoras funcionam como grandes “condomínios” de consumidores. Há subsídios cruzados, onde os grandes clientes pagam a maior parte dos custos. Se as empresas de gás canalizado começarem a perder grandes industrias de sua carteira, a capacidade de subsidiar os pequenos clientes minguará. É aí que reside o maior perigo para as distribuidoras (e para os pequenos clientes).

Considerando que o elo da distribuição configura-se como um monopólio natural, o que fariam os pequenos consumidores (industriais, comerciais e residenciais) que não possuem meios de construir seu próprio duto dedicado?

Para a Abegás, essa é uma prática predatória porque beneficiaria alguns em detrimento de muitos, que pagariam mais pelo serviço de gás canalizado. Como exemplo a entidade evoca o exemplo do Rio de Janeiro, onde o mercado de gás automotivo supera o mercado de gás industrial. “Se isso ocorrer, haverá uma elevação da tarifa do GNV que prejudicará taxistas e motoristas de aplicativo num momento de crise econômica agravada pelos preços dos combustíveis”, pontuou Marcelo Mendonça.

Segundo o executivo, apesar de artigo 29 da Lei do Gás versar sobre a possibilidade do chamado duto dedicado, a regulação da distribuição é única e exclusivamente de competência estadual. Uma lei federal que pretenda regulá-la configura-se, portanto, como uma interferência indevida da União. Diante disso, continua o diretor de Abegás, “a proposta de construção e implantação do duto dedicado é uma regulação oportunista e predatória”.

Marcelo destaca também que alguns estados concederam descontos na margem de distribuição para incentivar o mercado livre, sob alegação de que os custos de comercialização da molécula serão subtraídos do distribuidor. Mas, em sua análise, trata-se de um equívoco, pois a operação da companhia estadual se tornará mais complexa, assim como a gestões de contratos, de empilhamento de gás e de penalidades. “Achar que vai reduzir o custo de operação porque o cliente está migrando pro mercado livre é um erro conceitual”, diz.

Complexidade, burocracia e custos

Quem abastecerá o consumidor livre não será o importador ou produtor, mas o comercializador. Nenhum consumidor quer depender de apenas um produtor e vice-versa. O comercializador surge, portanto, como uma figura fundamental para o novo mercado de gás, aquele intermediário que possui um portfólio de produtores e consumidores.

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Mas o controle excessivo que alguns estados pretendem exercer sobre ele adicionam complexidade, burocracia e custos. É o que afirma Sylvie D’Apote, diretora de Gás do IBP. Para a economista, se as exigências exigidas pelos estados para cadastrar um comercializador fossem iguais aos procedimentos da ANP, não haveria o problema. Mas não é o que acontece.

De acordo com o Sylvie, há uma grande preocupação dos comercializadores de serem obrigados a revelar sua estratégia, abrindo seus contratos de fornecimento firmados com outros clientes em outros estados. Somado a isso, a obrigação de ter que abrir filiais em algumas unidades federativas esbarra em riscos tributários. Apesar de o IBP não ter se debruçado ainda sobre o tema, tudo indica que poderá haver dupla tributação se uma comercializadora tiver que vender para o cliente através de uma subsidiária no estado.

Sobre a preocupação operacional das distribuidoras e das agências reguladoras estaduais em relação ao fato de que o consumidor livre movimentará o gás adquirido na rede de distribuição, em outros países não há esse tipo de controle, garante Sylvie. “O sistema deve ser fluido”, afirma.

A executiva alerta também sobre o risco do “aviso prévio”, que incide sobre os grandes clientes que pretendem se desligar das distribuidoras e embarcar no mercado livre. “Em alguns estados, o cliente deve escolher com seis meses de antecedência se ficará no mercado cativo ou migrará para o livre. O problema é que a decisão precisa ser tomada antes da conclusão das negociações sobre a molécula e o transporte. Mas o que acontece se as negociações não forem concluídas e o cliente precisar recorrer à distribuidora?”, indaga.

Compass, um novo leviatã?

Apesar de a Lei do Gás não ter vedado a possibilidade de integração vertical entre distribuidor e comercializador, a possibilidade de abuso do poder econômico requer uma atuação firme dos órgãos reguladores e de defesa econômica, a fim de proteger o consumidor.

Em meio ao processo de aquisição da Gaspetro pela Compass, braço do grupo Cosan, sob avaliação do Cade, Adrianno Lorenzon considera a hipótese de que, se a operação for aprovada sem condicionantes, a companhia terá acesso às informações de quase todos os mercados cativos brasileiros. “Se a distribuidora estiver de mãos dadas com a comercializadora, poderá dificultar ainda mais a abertura do mercado”, afirma.

A preocupação faz sentido. Afinal, as distribuidoras sabem quem são os grandes clientes que, por ventura, podem migrar para o mercado livre e, assim, oferecer condições vantajosas para mantê-los no seu raio de ação.

Sendo assim, uma comercializadora que tem um pé na distribuição terá, supostamente, informações de mercado muito valiosas que suas competidoras não possuem. Então, ela poderá escolher seus clientes livres. As comercializadoras associadas às distribuidoras poderão ter facilidades onde suas competidoras encontrarão dificuldades.

Segundo o artigo 30 da Lei do Gás, é bom lembrar, “é vedado aos responsáveis pela escolha de membros do conselho de administração ou da diretoria ou de representante legal de empresas ou consórcio de empresas que atuem ou exerçam funções nas atividades de exploração, desenvolvimento, produção, importação, carregamento e comercialização de gás natural ter acesso a informações concorrencialmente sensíveis ou exercer o poder para designar ou o direito a voto para eleger membros da diretoria comercial, de suprimento ou representante legal de distribuidora de gás canalizado”.

O prazo para adequação aos requisitos estabelecidos no caput deste artigo, estabelecido a partir da publicação da lei, expira em 8 de abril de 2024.

Em ofício enviado ao Cade, onde manifesta a sua contrariedade à operação de aquisição da Gaspetro pela Compass, a Abep (Associação Brasileira de Empresas de Exploração e Produção de Petróleo e Gás) demonstra o risco de a Compass favorecer a sua comercializadora. No documento, a associação destaca a conduta associada ao self-dealing, que vem carregada de outro risco: o poder de monopsônio.

A princípio, a regulação estadual teria que coibir a prática do self-dealing . Mas, segundo a Abep, “isso não é uma realidade, pois há estados que sequer possuem regulação para a distribuição de gás natural e outros que não possuem regulação satisfatória para lidar com condutas associadas à atuação de empresas verticalizadas. As chamadas públicas que várias distribuidoras estão organizando para comprar gás natural dos potenciais supridores não afastam o risco apontado, pois elas têm como objetivo principal dar publicidade às demandas das distribuidoras, não se constituindo em processos concorrenciais de fato”.

Interesses por todos os lados

Consultado pela Brasil Energia, o escritório Vieira Rezende deu um “parecer” sobre a questão. Na avaliação de Ricardo Martinez, sócio da área de Petróleo, Gás Natural e Offshore, o imbróglio sempre recai na questão do serviço local de gás canalizado, um vespeiro que a nova lei não foi capaz de mexer. Somada a isso, há a intenção de alguns estados de manter a rentabilidade e maximizar o valor das distribuidoras para, eventualmente, privatizá-las. 

Sua colega, Maria Carolina Priolli, advogada da área de Petróleo, Gás e Offshore do Vieira Rezende Advogados, acredita que mesmo que muitos estados tenham avançado em suas regulações, a harmonização ainda é muito carente.Diante de tantos interesses, aponta Martinez, a harmonização das regulações estaduais torna-se algo muito difícil, por mais que o governo federal esteja se esforçando para organizar a migração para o novo mercado de gás. “Os estados não conseguem nem solucionar a guerra fiscal. Então, o que vai resolver é a pressão que vem debaixo pra cima – o mercado pressionando os estados, que serão impelidos a competir pelos investimentos”, opina.

Ela destaca, por exemplo, o caso do estado de São Paulo (ver Ranking da Abrace), que não impõe exigência de volume mínimo para o consumidor livre, mas que cobra taxa de fiscalização sobre este agente. “Se analisarmos caso a caso, veremos que há diferentes prazos de aviso prévio para migração do consumidor, multas contratuais por rescindir com a distribuidora… isso gera insegurança para o consumidor e o mercado livre”, analisa.

Já em relação aos entraves de alguns estados à figura do comercializador, Maria Carolina observa certa resistência por parte das distribuidoras por temor de perder a receita da comercialização. Isso dificulta a abertura do mercado livre, tendo em vista que a comercialização é uma atividade concorrencial. “As regras deveriam ser menos burocráticas para propiciar o maior número de comercializadores”, defende.

Afinal, quem tem razão?

Diz-se que onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão. No caso em tela, gás não falta onde sobram interesses e disputas – legítimas, diga-se de passagem. Como se vê, a abertura para o novo mercado de gás carrega muitos desafios ainda sem soluções definitivas. Afinal, como afirmou H.L. Mencken em certa ocasião, para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada.