Bom momento no setor de transmissão

FONTE: Brasil Energia

Apesar de ser um setor fortemente regulado, a transmissão no Brasil tem atraído crescente interesse de investidores e hoje se encontra em uma situação privilegiada em relação a outros setores da economia

Após cinco anos de estabilidade nas regras e uma forte expansão física, o setor de transmissão de energia brasileiro chega ao fim de 2021 com mais de 145 mil quilômetros de linhas em operação, mas enfrenta um desafio claro de modernização, ao mesmo tempo que tem que continuar crescendo, num cenário de forte descentralização da geração e crescimento exponencial de introdução de tecnologias disruptivas.

Se de um lado, a EPE calcula um investimento de mais de R$21 bilhões nos próximos 10 anos para a troca física de ativos que chegarão ao fim de sua vida regulatória, do outro o ONS vê uma demanda de mais de 80 GW de pedidos de conexão de usinas geradoras no mercado livre, além dos projetos que já estão previstos no mercado regulado, contratado nos leilões. “Estes são os principais desafios que trazem uma certa complexidade para o setor”, lembra Martha Rosa Carvalho, gerente de estudos de transmissão na consultoria PSR. 

Trocar equipamentos elétricos com 30 anos pode também ser visto como uma oportunidade de trazer novas tecnologias para enfrentar estes desafios. 

Segundo o presidente da Associação Brasileira das Empresas de Transmissão de Energia (Abrate), Mario Miranda, a modernização deve acontecer sem sobressaltos. Ele argumenta que as transmissoras têm experiência e capacidade técnica, robustez financeira e contam com o acerto regulatório, incluindo a recente regulamentação do pagamento da RSBE (um remuneração paga pelo consumidor às empresas de transmissão para  indenizar ativos de transmissão na renovação das concessões em 2021 por determinação da MP 579). 

“As transmissoras fizeram seus planos de negócios com mais intensidade [nos últimos anos]”, explica Miranda. “Era para ter trocado estes ativos mais cedo, mas este atraso não trouxe nenhuma fragilidade ao sistema, pois as empresas recebem pela disponibilidade do sistema e esta disponibilidade tem se mantido em média em 99,8%”.

Apesar de ser um setor fortemente regulado, a transmissão no Brasil tem atraído crescente interesse de investidores e hoje se encontra em uma situação privilegiada em relação a outros setores da economia, com receita anual garantida durante os 30 anos de concessão, uma forte previsibilidade nos reajustes e inadimplência extremamente baixa. 

O acerto regulatório foi atingido em 2017 após o setor elétrico sofrer com profundas mudanças oriundas da renovação das concessões pela MP 579 e da fragilidade no sistema anterior a 2002, que levou a atrasos em várias linhas licitadas, inclusive por causa do licenciamento ambiental. Mas hoje estes problemas parecem ser superados e a robustez citada por Miranda pode ser medida pelo grau interesse de investidores nos ágios de mais de 50% em média nos seis leilões de transmissão desde 2017. 

“O setor tem bons retornos, que são proporcionais ao risco”, conclui Thiago Gonthad, Diretor Financeiro da Mez Energia, empresa que foi criada pela família Zarzur, originalmente do setor de construção que escolheu a transmissão como porta de entrada para o setor energético como um todo, já que a empresa se prepara para entrar nos negócios de geração fotovoltaica e comercialização de energia. “O setor de transmissão acaba tendo o papel de ser o kick off para Mez, permitindo se especializar e treinar nosso pessoal”. 

A Mez entrou no setor em 2019 por meio dos leilões de transmissão. Além deles, a empresa busca constantemente outras oportunidades no mercado e participou dos leilões de privatização da Celg T e da CEEE T este ano. A empresa pode ser a mais nova entrante mas, desde 2017, o setor viu a chegada de vários players nacionais e internacionais que estão fazendo investimentos bilionários. 

Entre eles empresas do Canadá, China, Itália, Índia, Espanha e Portugal. Hoje são mais de 20 empresas atuantes em um setor que até a última década do século 20 era dominado pela Eletrobras e suas subsidiárias e as estaduais, principalmente a Cesp, Copel, Celesc e CEEE. “Investir em transmissão é como investir em um título de renda fixa”, explica Roberto Dumke, chefe de pesquisa de crédito no Banco ABC Brasil. 

Além da clareza das regras na hora determinar a RAP anual, a chave do negócio está no detalhado planejamento da expansão feita pelo Ministério de Minas e Energia, por meio da EPE, em conjunto com ​ Aneel e ONS. Estes estudos identificam oportunidades de crescimento da receita e estão calcados em estudos regionais e nacionais. Todas as oportunidades de negócios em transmissão estão descritas em uma série de de documentos como o Plano Nacional de Energia 2050, o  Plano Decenal de Energia (PDE), além de outros estudos mais específicos para o setor como o Programa de Expansão da Transmissão (PET) e o Plano de Expansão de Longo Prazo (PELP), que são revisão anualmente pela EPE. 

Só para se ter uma ideia do nível de detalhamento deste planejamento, em abril deste ano a EPE determinou a criação de seis grupos de estudos de expansão da transmissão: um por região geográfica do país e um para interligações regionais.

Este arcabouço de planejamento só reforça o interesse dos investidores, inclusive de empresas já atuantes no setor de energia que começaram a expandir significativamente na área. A EDP Brasil, braço local do conglomerado português EDP, adquiriu a Celg T – em Goiás – e aumentou seus ativos operacionais em transmissão em 90%, isso depois de ter arrematado mais de 1400 km  em leilões e comprar outros ativos de transmissão. 

Já no Sul, a CEEE-T foi arrematada pela CPFL Energia, controlada pela estatal chinesa State Grid. Com a aquisição dos ativos de transmissão gaúchos, a CPFL também deu um salto na presença no setor de transmissão, aumentando de 231 km para 6268 km as linhas operadas. 

Segundo os analistas e pesquisadores, estas empresas investiram​​ em transmissão para diversificar a receita do setor de energia e apostar em atividades de risco mais baixo, porém com uma receita robusta. A RAP para 2021 da Celg T, por exemplo, é de cerca de R$200 milhões e da CEEE-T é de R$800 milhões. 

Mas para participar deste setor é preciso ter porte financeiro e técnico. 

Para se ter uma ideia, desde 2017 foram leiloadas com sucesso 19.232 km de linhas de transmissão com tensões de 230kV a 500kV. O total de investimento declarado foi de mais de R$ 40 bilhões, ou seja, cerca de R$ 2 milhões para cada km de linha construída, inclusive as subestações. 

Nos próximos em 2024, a ONS prevê uma expansão da rede de 184 mil km, enquanto no PDE 2030, a EPE prevê o SIN atingindo 200 mil km, ou seja, um crescimento de 55 mil km ou 38% da rede. O investimento previsto no PDE em transmissão é de R$89 bilhões, sem contar a troca dos equipamentos velhos.  “O risco em transmissão está principalmente na construção, e para isso as transmissoras se preparam tecnicamente e financeiramente, com acesso a crédito. Um grande avanço no setor foi quando as transmissoras começaram a emitir debêntures incentivadas”, explica Martha, da PSR. Para ela, a principal estratégia é buscar antecipar a entrada em operação das linhas para, mais rapidamente, auferir as receitas dos contratos de concessão.

Para Antonio Deichmann, diretor de energia da Concremat, empresa de engenharia cujos principais produtos são sistemas de planejamento e acompanhamento de obras, o investimento previsto é um valor expressivo, mas que deve aumentar, uma vez que o país volte a crescer. “Este valor vai ter que ser revisto, mas é o suficiente no quadro atual”, explica. 

Mesmo sem crescimento econômico, a expansão da rede tem acontecido e deve continuar, um dos trunfos do setor desde que o governo e a Aneel acertaram o arcabouço regulatório que determinou um retorno adequado, lembra Martha da PSR. 

No entanto, mesmo com a necessidade de continuar expandindo, o governo e as empresas terão que enfrentar a principal mudança no setor elétrico brasileiro: a entrada de geradores de menor porte como as centrais eólicas e solares, principalmente por meio de contratos no mercado livre. “No passado era relativamente fácil, com grandes hídricas nas pontas e centrais grandes centrais térmicas”, lembra Miranda, da Abrate. 

Além do grande número de novas usinas de energia renovável e variável, o fato de grande parte das novas usinas geradoras serem contratadas no mercado livre também afeta o planejamento. 

As contratações no mercado regulado – por meio de leilões – permitem um planejamento a longo prazo da expansão da rede de básica já que, desde que foram introduzidos em 2004, os leilões contratam energia com três quatro ou cinco anos de antecedência, dando previsibilidade na entrada de operação e, portanto, dando tempo para expandir a infra estrutura de transmissão. 

Com forte expansão do mercado livre, os parques eólicos e solares podem ser construídos rapidamente e a solicitação de acesso se dá com um, dois ou três anos de antecedência. E mesmo assim sem 100% de certeza que a conexão vai acontecer. 

Tentando antecipar esta complexidade, a EPE já está fazendo estudos prospectivos de expansão da rede para incluir não só as renováveis com grande variabilidade de geração, mas também por causa das incertezas trazidas pelo crescimento do mercado livre. 

Ainda falta consenso sobre qual será a solução final, mas todos concordam que algo precisa ser feito. 

“Hoje, o acesso a rede é por ordem de chegada. Acredito que isso deva mudar e o governo deverá exigir algum tipo de pagamento para garantir o acesso fazendo com que o compromisso seja mais firme e possibilite um planejamento melhor”, sugeriu Martha.