O novo normal: Inovação e Estratégia – por Evandro Milet
FONTE: onovonormal.blog
O meme circulou faz uma ou duas semanas no Reino Unido — o premiê Boris Johnson liga para a rainha Elizabeth II e pergunta, como quem não quer nada. “A senhora dirigiu caminhões durante a Guerra, não?” Elizabeth II trabalhou de fato, no esforço de Guerra, como mecânica de caminhões. E Johnson está desesperado atrás de motoristas para a frota — há, na Grã Bretanha, 100 mil vagas abertas com ninguém que deseje preenchê-las. O governo abriu um programa de vistos temporários para atrair motoristas principalmente do Leste Europeu. Após duas semanas apareceram vinte candidatos. O resultado mais visível da crise são as longas filas de carros para abastecer nos postos de combustível. Derivados de petróleo estão em falta. Mas não é só lá. Em agosto havia 40 navios cargueiros na fila para descarregar no maior porto dos Estados Unidos, o de Los Angeles e Long Beach. Em setembro já eram 70. Agora em outubro os números pararam de ser divulgados. É pouco. No mar próximo dos portos de Hong Kong e de Shenzen, na China, a fila passa de cem navios. Nas contas do Conselho dos Exportadores de Café do Brasil, o setor deixou de exportar nos últimos meses US$ 500 milhões em grãos. Por falta de contêineres de navio. No Vietnã, o principal centro produtor de roupas do mundo, as fábricas fecharam em setembro após uma explosão de casos de Covid. A Apple anunciou que vão faltar iPhones 13 no Natal — não há peças para fabricar e atender à demanda.
A globalização quebrou. Mas por quê?
Os motivos são muitos mas podem ser reduzidos a três. Um deles é que a globalização deu certo. Outro é a pandemia. O terceiro é que a infraestrutura do planeta não está preparada para uma economia que se digitaliza rapidamente. As três questões são independentes mas se correlacionam. Há uma tempestade perfeita em curso e as consequências são muitas. Em termos macroeconômicos está gerando inflação porque há pouca oferta e muita demanda. E a demanda não é só por produtos, é também por mão de obra que em muitas funções enfrenta escassez.
O mundo em contêineres
O que passamos a chamar de globalização, na década de 1990, é a relação de inúmeros fenômenos distintos. Mas, na indústria, ela nasce quando a Toyota era uma fábrica de caminhões precisando atender a muitos pedidos do governo japonês para o esforço de guerra, nos anos 1930. Os executivos tinham de lidar com os riscos de ter pouco dinheiro em caixa mas muitas encomendas numa sociedade particularmente eficiente. Assim, tomaram a decisão de não estocar peças, como sempre foi a praxe na indústria automotiva. As peças eram encomendadas de fornecedores de confiança e chegavam apenas conforme eram necessárias. Esta maneira de fabricar se espalhou pelo mundo de forma muito lenta até que, nos anos 80, ganhou fama e se popularizou com o nome Just in Time — algo como ‘no momento exato’. Hoje o método é chamado de lean manufacturing, ou ‘manufatura magra’ no sentido de sem excessos.
A dificuldade do método é que ele só funciona com eficiência de toda a cadeia. Os fornecedores têm de ser tão ágeis quanto quem fabrica e o transporte de um canto para o outro exige precisão.
Pois o que passou a ocorrer de forma diferente, na última década do século 20, foi uma abertura generalizada de mercados. Assim, a possibilidade de fabricar com qualidade em locais do mundo que produziam por um custo muito mais baixo fez do método global. Os oceanos abriram para um tráfego constante de navios levando matéria prima de um canto ao outro, para que em fábricas fossem transformadas em peças que novamente eram colocadas em navios para que em outras fábricas noutros países virassem produtos de novo colocados em navios e exportados para os mercados em que seriam consumidos.
A história do rápido crescimento da China passa por este momento de transformação do mundo. O país se especializou na fabricação de equipamento digital de ponta e, posteriormente, com o dinheiro ganho investiu na formação de engenheiros para desenvolver sua própria tecnologia. Mas também o crescimento bem mais tímido do Brasil, nos primeiros anos do século 21, passa por aí — exportando matéria prima para a China, principalmente ferro, petróleo e a soja que alimenta rebanhos.
A globalização não é apenas fruto de um jeito mais eficiente de fabricar ou da abertura de mercados. O motivo pelo qual ambos foram possíveis passa pela sistematização, no final da década de 1970, do sistema de contêineres de navios. As grandes caixas na qual produtos são armazenados para transporte marítimo já existiam desde o século 18. Mas o que aconteceu a partir dos anos 80 foi que, com tamanhos dos contêineres padronizados, foi possível criar uma frota naval uniforme. Quando se constrói um navio já se sabe quantos contêineres caberão. Eles têm, também, um tamanho que permite serem transportados por caminhões e trens. Os equipamentos de portos, como sistemas de guindaste, são igualmente construídos para os tamanhos pré-determinados. O padrão fez o preço do transporte despencar. Como num jogo de Lego, as peças sempre se encaixam e o fluxo navio-porto-transporte terrestre é contínuo.
Mais recentemente, algumas mudanças ocorreram que ajudaram a formar a crise. A primeira é que a indústria de transporte marítimo se consolidou — hoje, dez companhias controlam 80% do mercado. Outra é que estas empresas estão construindo navios cada vez maiores.
O resultado prático é que, com menos concorrência, as transportadoras passaram a ter poder de ditar as rotas que seguirão e o momento em que saem e chegam. Isto quer dizer que estão esperando mais para encher próximo do máximo cada navio. Os portos, porém, não foram adaptados para descarregar estes navios gigantes.
Contêineres podem ser empilhados nos pátios de portos. Mas o problema não é apenas que navios grandes demoram mais tempo para serem descarregados e que os contêineres neles ocupam mais espaço nos pátios. O problema é também de escoamento. O número de pistas nas estradas que saem dos portos, assim como o de trilhos de trem, também não foi ampliado. Não bastasse, contêineres empilhados são mais difíceis de gerenciar. O caminhão chega para pegar um destes, é preciso localizar onde está no pátio e, caso esteja na base de uma pilha, demora mais para o guindaste separá-lo. Os navios aumentaram — o resto do sistema, não.
E aí bate na mão de obra. Em países como os da Europa, no Reino Unido o problema é mais agudo, os motoristas de caminhão estão envelhecendo e não estão sendo substituídos. Os salários, os benefícios, e o trabalho simplesmente não são atraentes o bastante para as novas gerações. Nos EUA, impacto semelhante ocorre com os trabalhadores de portos. Há falta de mão de obra e dificuldade de contratação.
O boom do digital
Em 2019, a indústria global do e-commerce vendeu US$ 3,3 bilhões de dólares em produtos, de acordo com a Statista. No ano seguinte, o ano da explosão da Covid, vendeu US$ 4,3 bilhões. A estimativa para este ano é de que cresça perto de outro bilhão. Números assim costumam ser celebrados e identificados como reflexo de uma cultura digital que se expande rapidamente — o que é verdade. O e-commerce cresceu. Mas o e-commerce também torna mais complexa toda a logística de transporte que já estava naturalmente pressionada.
Quando uma grande cadeia de varejo vende celulares, seus executivos ordenam a compra de grandes lotes que vêm da China ou doutro canto e distribuem as máquinas por um número restrito de lojas pelo país. Mas quando um rapaz na periferia paulistana percebe que pode comprar um smartphone turbinado por um site chinês, podendo parcelar e pagando menos, aí a situação muda. Não são lotes de celulares que são vendidos — é um aparelho. Que é empacotado, endereçado, e colocado com muitas outras unidades de produtos os mais diversos num contêiner de miscelânea que chega ao Brasil para ser distribuído, um a um, não para uma cadeia com número limitado de lojas. Mas cada unidade para um endereço residencial final.
Está acontecendo no Brasil como está acontecendo em todo o mundo. O volume de produtos transportados aumentou e, cada vez mais, representam não apenas grandes lotes de um grande comprador mas, também, unidades adquiridas por muitos compradores.
Este é um dos resultados da aceleração da cultura digital criada pela pandemia. Outro resultado é que as pessoas estão pensando mais a respeito de suas vidas. Sobre o que querem para si mesmas. Há um debate em curso, nos EUA e na Europa, a respeito de por que algumas indústrias estão encontrando muita dificuldade de contratar. É o caso, nos EUA, da indústria de hotelaria e restaurantes. Na Europa, a indústria de transporte de produtos. Alguns políticos conservadores criticam os benefícios distribuídos durante a pandemia. Argumentam que muitos não querem trabalhar porque estão recebendo dinheiro sem precisar sair de casa.
Mas não parece ser apenas isso. No Vale do Silício, engenheiros, desenvolvedores e designers que recebem altos salários estão em choque com os gestores das companhias num debate sobre o esquema de trabalho. As pessoas se habituaram a trabalhar em casa e não querem voltar para o escritório. E, em muitos casos, estão dispostas a abrir mão do emprego porque estão convencidas de que conseguirão trabalhar com a liberdade de poder definir os próprios horários e o local do serviço noutros cantos. Há quem defenda que este não seja um fenômeno apenas de gente com profissões bem pagas mas algo que atinja de forma mais generalizada muitos nas novas gerações. A vontade de ter mais controle e flexibilidade sobre a própria vida.
É uma transformação cultural que o digital permite, que foi acelerada pela experiência da pandemia, e que impacta diretamente os fluxos de produtos. Mais do que isso — o aumento da demanda e o gargalo na oferta está gerando inflação por toda parte. Na Alemanha, pela primeira vez desde a unificação do país, passou de 4% ao ano. No Brasil, em que o dólar vem sendo mantido artificialmente alto, passou dos 10%. A Argentina já ordenou congelamento do preço de produtos.
Como resolver?
A Era Industrial acabou, a Era Digital está nascendo — mas não está pronta. A solução do problema passa por muitos caminhos. Um, evidentemente, é o fim da pandemia. Não sabemos o quanto das mudanças de comportamento são definitivas ou temporárias. Talvez seja necessário um ajuste salarial em determinadas profissões. Talvez baste a pressão das contas por pagar para que estes empregos voltem a ser preenchidos. Ou talvez a solução passe por reorganizar o trabalho — aumento do número de folgas em troca de menores salários, por exemplo.
Não é só: inúmeros países já compreenderam que a próxima década é uma que exigirá pesados investimentos em infraestrutura. Ampliar os portos que existem, erguer novos, melhorar a teia de estradas de rodagem e de ferro pelos países. Estes gastos, fatalmente, não serão apenas na ampliação mas também em sustentabilidade. As estruturas precisarão emitir menos carbono. E, ao redor da infraestrutura física, inteligência artificial será cada vez mais empregada para tornar os fluxos de idas e vindas mais eficientes. Um just in time aperfeiçoado.
Não basta — outro dos cálculos sendo feitos é de que a globalização precisa ser ampliada e descentralizada. O Vietnã, por exemplo, está parado faz um mês por conta da variante Delta da Covid. O surto lá tem razão de ser: de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde, apenas 17% dos vietnamitas haviam sido vacinados com as duas doses até a última quarta-feira. Há um mês este número não chegava a 4%. O Brasil, em comparação, já tinha 47% da população plenamente vacinada na quarta.
É assim no mundo todo: países mais pobres têm tido dificuldades de obter vacinas enquanto os mais ricos têm doses extras em estoque.
Só que o Vietnã é, também, o quarto maior fabricante de roupas e sapatos do mundo. É o segundo maior exportador de roupas para os EUA, que é o maior importador do mundo. Desta forma, se o Vietnã para em setembro e outubro, as lojas de roupas americanas não terão o que vender no Natal. Enquanto isso, navios começam a engarrafar os portos vietnamitas. Quando forem carregados, chegarão todos de uma vez.
Esta dinâmica tem se repetido em toda a cadeia, em inúmeras indústrias, no último ano e meio. É irônico, mas uma das características do processo de globalização é que ele concentrou a manufatura num pedaço da Ásia. As próximas décadas provavelmente levarão ao aumento de concorrência: uma oportunidade para a África e para a América Latina.
Esta é uma política que, no caso latino-americano, Washington gostaria de incentivar. Os EUA precisam e desejam diminuir sua dependência da China. O principal obstáculo é que a cultura econômica latino-americana é uma de mercados fechados e estas barreiras ao comércio exterior dificultam a criação de grandes parques manufatureiros que possam competir com os de países asiáticos.
Mas a oportunidade está na mesa. Afinal, a globalização quebrou. O conserto é mais globalização.
Por Pedro Doria