A utopia e a realidade da universalização do saneamento básico
FONTE: saneamentobasico.com.br
Enéas Ripoli* e Hélio Samora**
É factível uma montadora de automóveis produzir um milhão de carros por ano e jogar fora a metade desse total? Claro que isso parece não apenas improvável como impossível, mas traçando um paralelo, e por incrível que pareça, é isso que acontece com a água no Brasil. Anualmente são extraídos mais de 16 bilhões de m³ de água dos mananciais hídricos, transformados em água potável, mas aproximadamente 50% desse total são perdidos. Reduzir ao máximo essas perdas será fundamental para que as empresas públicas e privadas de saneamento consigam cumprir a meta da universalização dos serviços, ou seja, de levar a água tratada a 99% da população e recolher e tratar 90% do esgoto até 2033, o que foi estipulado pelo novo Marco Legal Regulatório do Saneamento Básico, sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro em julho deste ano.
E como as empresas públicas e privadas farão isso? Com investimentos e melhorando a gestão. Simples? Nem tanto, porque na área de saneamento há paradigmas que devem ser quebrados. Um dos principais é a cultura de obra predominante no país. Quando se fala em água, o que vem à cabeça dos prefeitos, governadores e diretores das empresas do setor é cavar um novo poço, instalar bombas mais potentes, investir em tecnologias para limpar a água mais rapidamente, e coisas do tipo, mas nunca pensam em buscar maior eficiência, o que se consegue com uma boa gestão. E apenas é possível melhorar a gestão com investimentos em soluções tecnológicas que permitam identificar onde, como e por que ocorrem as perdas de água e ainda indiquem ações para saná-las. Um exemplo de solução é o SmartAcqua, um sistema que utiliza Inteligência Artificial e que faz exatamente isso.
Mas ainda há resistências nesse sentido porque a produção de água é monopólio, público ou privado, e a matéria-prima extraída dos mananciais hídricos é de graça. Hoje, 6% das cidades são atendidas pela iniciativa privada e nas outras 94% o serviço está a cargo das companhias municipais ou estaduais, e estas contam com a ajuda do governo federal. E o que todas têm em comum é o controle do abastecimento e dos valores das tarifas, as quais são majoradas desde o início da concessão de forma que as perdas de água, no final das contas, não trazem prejuízos. Mas prejudicam de forma substancial a população. Estudos comprovam que metade da água que se perde anualmente daria para abastecer 35 milhões de pessoas e geraria algo em torno de R$ 12 bilhões ao ano de crescimento de receita para as companhias de saneamento.
Necessidade de Saneamento Básico
Vale ressaltar que em várias cidades do Norte e Nordeste do país as perdas de água são superiores a 80% e muitos desses municípios carecem de saneamento básico. Mas mesmo nas cidades em que há 100% de abastecimento de água e 100% de esgoto recolhido e tratado, como é o caso de Piracicaba, no interior de São Paulo, 53% da água são perdidos (SNIS – 2018). E essas perdas continuam todo ano a aumentar em detrimento à universalização dos serviços de água e esgoto, ao meio ambiente, às tarifas justas como também a outras cidades que precisam da água do mesmo manancial hídrico e não a têm.
O novo Marco Regulatório que ampliará a participação das companhias privadas e as leis complementares que irão penalizar as empresas, os prefeitos e os governadores que não atingirem as metas estipuladas, talvez os obrigue a uma mudança de cultura e atitude. Mas é fundamental promover ações em paralelo para fazer com que o cidadão comum tenha maior consciência sobre a questão da água e mais amor ao meio ambiente. Uma forma de se quebrar o atual status quo é atingir o bolso do consumidor e/ou o do acionista, porque essa é a parte mais sensível em ambos. Quando se fala para o consumidor que na cidade dele paga-se R$ 10 o m³ de água e na cidade vizinha custa a metade porque lá há menos perdas, e fica claro para os acionistas o montante de dinheiro que estão deixando de ganhar, talvez essa seria uma maneira de estimular a mudança e fazer a população cobrar de fato e com rigor maior eficiência das empresas e dos governantes.
*Enéas Ripoli é graduado em Administração de Empresas (PUC) e em Engenharia de Sistemas (FAAP) e sócio-fundador das empresas Gestágua Consultoria em Perdas de Água e da SmartAcqua, da qual é CTO.
**Hélio Samora é graduado em Engenharia Mecânica (Mackenzie), com pós-graduação em Marketing Industrial (ESPM)e sócio-fundador e CEO da SmartAcqua.